- Há uma nova verdade que
nasce - explicou Ulrich. - Logo que alguém encontra o amor, não
como uma experiência qualquer, mas como a própria vida, ou pelo
menos como uma das formas possíveis dessa vida, passa a conhecer um
enxame de verdades. Quem julga sem amor chama a isso pontos de vista,
opiniões pessoais, subjectividade, arbitrariedade; e para esses é
isso e mais nada. Mas aquele que ama sabe que não é insensível,
mas hipersensível à verdade. O seu estado é o de uma espécie de
entusiasmo do pensamento no qual as palavras se abrem até ao fundo.
E compreende, em todos os sentidos, mais do que seria necessário.
Mal consegue defender-se do excesso inesgotável trazido por esse
estado. E sente que qualquer desejo de explicar tudo com exactidão
só pode afugentar esse outro saber. Não pretendo afirmar que isto
seja uma outra forma de verdade, porque verdade só há uma, mas sim
que estamos perante uma centena de possibilidades que são mais
importantes do que a verdade. Para ser mais rigoroso, é qualquer
coisa que leva a que a verdade perca a importância que lhe é
atribuída. Talvez se possa dizer que a verdade é o resultado
inequívoco de uma atitude para com a vida que de modo nenhum
sentimos que seja inequivocamente a verdadeira atitude! - continuou
Ulrich, contente por achar que, pela primeira vez, a descrição lhe
saíra mais exacta, e concluiu: - Provavelmente, o estar rodeado de
um enxame de verdades significa apenas que aquele que ama está
disponível para tudo aquilo que foi amado, e por isso também
desejado, pensado e expresso em palavras; aberto a todas as
contradições, que afinal são próprias de seres que sentem; e até
para tudo o que há de mais baixo, desde que se encontre a palavra
que lhe sirva de protecção maternal. Para aquele que ama, os sinais
de decisão da verdade e da moral foram substituídos pela força
suave da vida que desponta por toda a parte; continuam lá, mas
encobertos pela fertilidade e a plenitude. Para quem ama, a verdade e
a ilusão são ambas insignificantes, sem que isso lhe pareça
arbitrário. Trata-se, é claro, apenas de uma atitude pessoal
diferente, mas arriscaria dizer que tudo depende, em última análise,
da existência, sob a superfície da realidade vitoriosa, de inúmeras
possibilidades que também se poderiam ter concretizado. E quem ama
desperta essas possibilidades. De repente, tudo lhe parece ser
diferente do que se julga. De cidadão deste mundo, transforma-se num
ser de mundos sem conta ... !
- E essa é, de facto,
outra realidade! - exclamou Agathe.
- Não! - respondeu
Ulrich, hesitante. - Eu, pelo menos, não estou seguro disso. É
simplesmente a antiquíssima oposição entre conhecimento e amor,
que sempre se afirmou existir.
Robert Musil, O Homem sem Qualidades
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