domingo, 23 de dezembro de 2012

- Há uma nova verdade que nasce - explicou Ulrich. - Logo que alguém encontra o amor, não como uma experiência qualquer, mas como a própria vida, ou pelo menos como uma das formas possíveis dessa vida, passa a conhecer um enxame de verdades. Quem julga sem amor chama a isso pontos de vista, opiniões pessoais, subjectividade, arbitrariedade; e para esses é isso e mais nada. Mas aquele que ama sabe que não é insensível, mas hipersensível à verdade. O seu estado é o de uma espécie de entusiasmo do pensamento no qual as palavras se abrem até ao fundo. E compreende, em todos os sentidos, mais do que seria necessário. Mal consegue defender-se do excesso inesgotável trazido por esse estado. E sente que qualquer desejo de explicar tudo com exactidão só pode afugentar esse outro saber. Não pretendo afirmar que isto seja uma outra forma de verdade, porque verdade só há uma, mas sim que estamos perante uma centena de possibilidades que são mais importantes do que a verdade. Para ser mais rigoroso, é qualquer coisa que leva a que a verdade perca a importância que lhe é atribuída. Talvez se possa dizer que a verdade é o resultado inequívoco de uma atitude para com a vida que de modo nenhum sentimos que seja inequivocamente a verdadeira atitude! - continuou Ulrich, contente por achar que, pela primeira vez, a descrição lhe saíra mais exacta, e concluiu: - Provavelmente, o estar rodeado de um enxame de verdades significa apenas que aquele que ama está disponível para tudo aquilo que foi amado, e por isso também desejado, pensado e expresso em palavras; aberto a todas as contradições, que afinal são próprias de seres que sentem; e até para tudo o que há de mais baixo, desde que se encontre a palavra que lhe sirva de protecção maternal. Para aquele que ama, os sinais de decisão da verdade e da moral foram substituídos pela força suave da vida que desponta por toda a parte; continuam lá, mas encobertos pela fertilidade e a plenitude. Para quem ama, a verdade e a ilusão são ambas insignificantes, sem que isso lhe pareça arbitrário. Trata-se, é claro, apenas de uma atitude pessoal diferente, mas arriscaria dizer que tudo depende, em última análise, da existência, sob a superfície da realidade vitoriosa, de inúmeras possibilidades que também se poderiam ter concretizado. E quem ama desperta essas possibilidades. De repente, tudo lhe parece ser diferente do que se julga. De cidadão deste mundo, transforma-se num ser de mundos sem conta ... !
- E essa é, de facto, outra realidade! - exclamou Agathe.
- Não! - respondeu Ulrich, hesitante. - Eu, pelo menos, não estou seguro disso. É simplesmente a antiquíssima oposição entre conhecimento e amor, que sempre se afirmou existir.
Robert Musil, O Homem sem Qualidades

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