A partir dessa noite em
que aquele homem que eu venerava acima de todos me abriu o seu
destino como quem abre uma concha, a partir dessa noite, já lá vão
quarenta anos, tudo o que os nossos escritores e poetas contam nos
livros como algo extraordinário e todas as tragédias que as peças
de teatro arquitectam nos bastidores do palco me pareceram pueris e
sem importância. Será por comodismo, cobardia ou vistas curtas que
todos se contentam com dar contornos visíveis à camada superior e
iluminada da vida, onde os sentidos brincam aberta e legitimamente,
enquanto lá em baixo, nas caves, nas cavernas profundas e nas
cloacas do coração, se agitam, em emanações fosforescentes, as
bestas realmente perigosas da paixão, acasalando e dilacerando-se na
sombra, e assumindo as mais fantásticas formas de envolvimento?
Sentir-se-ão amedrontados
pelo sopro ardente e devorador dos instintos demoníacos, pelo vapor
do sangue abrasador? Terão medo de sujar as mãos delicadas nas
úlceras da humanidade, o seu olhar, habituado a uma luz mais fosca,
não será capaz de os fazer descer estes degraus escorregadios,
perigosos, atolados na putrefacção? E, no entanto, para quem detém
o saber, nenhuma alegria é comparável à que está oculta, nenhum
arrepio é tão poderoso como o que gela o perigo, nenhum sofrimento
é mais sagrado do que aquele que, temeroso, não ousa manifestar-se.
Mas aqui era um homem que
se me revelava em toda a sua nudez; aqui, um homem rasgava o que de
mais íntimo havia no seu peito, disposto a pôr a nu o pulsar de um
coração envenenado, consumido, supurado. Naquela confissão
reprimida anos a fio, havia uma volúpia selvagem que se martirizava,
se flagelava. Só alguém que toda a vida tivesse sentido vergonha,
se tivesse humilhado e escondido, conseguiria formular com aquele
inebriamento transbordante uma confissão tornada inexorável. Um
homem arrancava do peito a sua vida pedaço a pedaço, e naquela
hora, eu, que não passava de um miúdo, vislumbrei pela primeira vez
as profundezas inconcebíveis do sentimento humano.
Primeiro a voz vagueou,
imaterial, pela sala, como um fumo turvo, libertando-se da emoção,
numa alusão insegura a acontecimentos secretos; no entanto,
sentia-se, pela dor com que o arrebatamento era controlado, que ia
irromper em fúria, como quando, em certos trechos musicais, os
nervos pressentem a veemência do furioso no ritmo violentamente
moderado dos compassos que o antecedem. Depois, porém, as imagens
irromperam com um brilho rutilante, elevando-se, frementes, acima do
arrebatamento da tempestade interior, tornando-se, aos poucos, mais
claras.
Stefan Zweig, Confusão de Sentimentos
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