Mas foi só exteriormente
e de um ponto de vista político que se evitou o descalabro radical
naqueles primeiros anos do pós-guerra; a nível interno teve lugar
uma revolução de grandes proporções - juntamente com os
exércitos, algo mais tinha sido derrotado: a crença na
infalibilidade das autoridades, crença essa na qual a nossa própria
juventude tinha sido educada em espírito de excessiva submissão.
Mas teria sido possível aos alemães continuarem a admirar o seu
imperador que jurara lutar «até ao último sopro de homem e
montada» e que, a coberto da noite e do nevoeiro, se escapulira para
o outro lado da fronteira, ou os comandantes dos exércitos, os
políticos ou os poetas que incessantemente tinham rimado Krieg
(guerra) com Sieg (vitória) e Not (necessidade) com
Tod (morte)? O horror só agora se manifestava, agora que o fumo da
pólvora se tinha dissipado sobre o país, agora que se tornava
evidente a devastação causada pela guerra. Como poderia ainda ser
considerado sagrado um mandamento moral que, ao longo de quatro anos,
autorizara morticínios e pilhagens sob o epíteto de heroísmo e de
requisição? Como havia um povo de acreditar nas promessas do Estado
que se esquivara a todas as obrigações incómodas que tinha perante os
cidadãos? (...) Uma juventude inteiramente
nova já não acreditava nos pais, nos políticos, nos professores;
qualquer determinação, qualquer proclamação do Estado era lida
com olhar desconfiado. De uma penada, a geração do pós-guerra
emancipou-se brutalmente de tudo quanto até aí fora válido e
voltou as costas a todas as tradições, decidida a tomar em mãos o
seu destino, longe do passado que ficara para trás e lançando-se
para o futuro. Um mundo inteiramente novo, uma ordem inteiramente
diferente deveria nascer com ela em todos os âmbitos de vida; e como
é natural, o começo foi marcado por exageros descontrolados. Quem
não fosse, ou tudo aquilo que não fosse da sua faixa etária era
posto de lado. Em vez de viajarem com os pais, como dantes, os miúdos
de onze, doze anos, rumavam pelo país fora até à Itália ou ao Mar
do Norte, organizados em grupos designados de Wandervögel e
perfeitamente esclarecidos sobre questões sexuais. Nas escolas
organizaram-se conselhos de alunos de acordo com o modelo russo, que
vigiavam os professores e o «plano de estudos», subvertendo-o, pois
as crianças só deviam e só queriam aprender o que lhes agradasse.
A revolta ocorria pelo simples prazer da revolta, contra as formas
estabelecidas, até mesmo contra a vontade da natureza, contra a
eterna polaridade dos sexos. As raparigas usavam o cabelo tão curto,
à la garçonne, que não era possível distingui-las dos
rapazes; por seu lado, os homens rapavam a barba para parecerem mais
femininos; a homossexualidade e o lesbianismo tornaram-se numa grande
moda, não por uma questão de inclinação natural, mas como
protesto contra as formas tradicionais, legais, normais do amor.
Todos os modos de expressão da existência se esforçavam por pôr
em destaque o seu carácter radical e revolucionário, e claro que a
arte não constituiu excepção. A nova pintura declarou como ultrapassado tudo o que Rembrandt, Holbein e Velázquez haviam
criado, e deu início às mais impetuosas experiências cubistas e
surrealistas. Em todo o lado o elemento inteligível se viu
proscrito, a melodia na música, a semelhança no retrato, a clareza
na linguagem. Os artigos da língua alemã der, die, das foram eliminados, a sintaxe posta de pernas para o ar, a escrita tornada
«oblíqua» e «fresca», em estilo de telegrama, com interjeições
ardentes; além disso, toda a literatura que não fosse activista, ou
seja, que não fosse teorização política, era atirada para o
caixote do lixo. A música procurava obstinadamente uma tonalidade
nova e desarticulava os compassos, a arquitectura voltava as casas do
avesso; na dança, a valsa desapareceu a favor de figuras cubanas e
negróides; a moda, ao sublinhar energicamente a nudez, inventava
constantemente novas absurdidades; no teatro representava-se Hamlet
em fraque e experimentavam-se dramaturgias explosivas. Em todos os
campos se deu início a uma época da mais arrebatada experimentação,
tendente, através de um único salto fogoso, a ultrapassar tudo o
que existira, tudo o que se fizera, tudo o que se alcançara; quanto
mais jovem uma pessoa fosse, quanto menos tivesse aprendido, tanto
mais bem recebida era, pois não estava ligada a nenhuma tradição -
finalmente a juventude dava triunfalmente largas à sua desforra
contra o mundo dos nossos pais. Mas no meio deste carnaval
desregrado, nada me oferecia um espectáculo mais trágico-cómico do
que ver até que ponto muitos intelectuais da geração mais velha,
levados pelo pânico de serem ultrapassados e considerados
«desactualizados», se maquilhavam com uma selvajaria artificial,
num apressado desespero, tentando também, desajeitadamente, e em
passo manquejante, seguir os
caminhos manifestamente mais aberrantes. Honestos
e honrados professores da academia, de barbas grisalhas, pintavam
cubos e hexaedros por cima das suas «naturezas mortas» de outrora,
que agora ninguém comprava, só porque os jovens directores (por
todo o lado os jovens eram agora procurados, ou melhor: os
mais jovens) retiravam das galerias todos os outros quadros,
considerados demasiado «clássicos», remetendo-os para o depósito.
Escritores que anos a fio tinham escrito num alemão equilibrado e
claro, mutilavam obedientemente as suas
frases e excediam-se em «activismo»; conselheiros de Estado
prussianos, refastelados na vida, ensinavam Karl Marx a partir da
cátedra; bailarinas da corte, já de certa idade, apresentavam-se
nuas a três quartos, dançando com contorções «forçadas» a
Appassionata de Beethoven e a Verklärte Nacht (Noite
Transfigurada) de Schönberg, Por toda a parte, os mais velhos
corriam desnorteados atrás da última moda; de
repente, já só havia uma ambição: a de ser «jovem» e de
inventar rapidamente, atrás de uma tendência que ontem ainda era
actual, uma outra ainda mais actual, mais radical, nunca vista até
então.
Que época selvagem,
anárquica, inverosímil, a daqueles anos em que, com a
desvalorização do dinheiro, todos os outros valores na Áustria e
na Alemanha começaram a resvalar! Um período de êxtase
entusiástico e de vertigem descontrolada, uma mistura única de
impaciência e fanatismo. Tudo o que era extravagante e incontrolável
conheceu uma época de ouro: teosofia, ocultismo, espiritismo,
sonambulismo, antroposofia, quiromancia, grafologia, ioga indiano e
misticismo paracelsiano. Tudo o que prometesse estados de extrema
intensidade para além do que então se conhecia, rodo o tipo de
estupefacientes, mórfio, cocaína e heroína, tudo se vendia num
instante; nas peças de teatro, o incesto e o parricídio, na
política, o comunismo ou o fascismo, constituíam os únicos temas
apetecidos, pelo seu extremismo; incondicionalmente banida estava, em
contrapartida, qualquer forma de normalidade, de
moderação. Mas não desejaria que esta época caótica não fizesse
parte da minha vida pessoal e do desenvolvimento da arte. Como
qualquer revolução espiritual que irrompe orgiasticamente no
primeiro arrebatamento, ela limpou o ar de tudo o que era
sufocantemente tradicional, permitiu descarregar as tensões
acumuladas durante muitos anos e, seja como for, muitos estímulos
valiosos ficaram das suas experiências arrojadas. Por muito que os
seus exageros nos causassem estranheza, não nos sentíamos no
direito de a censurar e de a rejeitar com arrogância, pois no fundo
aquela nova juventude procurava corrigir - ainda que com
impetuosidade e impaciência excessivas - o que a nossa geração
tinha negligenciado com a sua prudência e isolamento. No fundo, o
seu instinto era justo: o tempo do pós-guerra tinha de
ser diferente do tempo anterior à guerra - e nós, os mais velhos,
não tínhamos desejado também um mundo novo, um mundo melhor, antes
da guerra e durante a guerra? É verdade que, depois da guerra, nós,
os mais velhos, tínhamos mostrado uma vez mais a nossa incapacidade
em contrapor atempadamente uma organização
supranacional à perigosa repolitização do mundo.
Stefan Zweig, O Mundo de Ontem
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