O morto era grisalho.
Tinha duas grandes ondas grisalhas na fronte. Mas não era velho. O
rosto era comprido e o nariz ossudo e ligeira e delicadamente torto.
As sobrancelhas estavam erguidas como se tivesse mergulhado no
pensamento final. Agora estava, por fim, com ele, após terem
terminado todas as distrações e quando a sua carne já não era
carne. E Wilhelm ficou tão impressionado com este aspeto meditativo
que não conseguia afastar-se. Apesar do sentimento de terror e da
sensação de desespero que experimentou de seguida, não podia
continuar. Saiu da fila e deixou-se ficar junto ao caixão; os seus
olhos encheram-se silenciosamente e, através das lágrimas imóveis,
observou o homem enquanto a fila de visitantes passava, com olhares
velados, pelo caixão acetinado em direção ao conjunto de lírios,
lilases e rosas.(...)
Afastando-se um pouco, Wilhelm começou a chorar... De início,
chorou suave e sentimentalmente, mas, em breve, devido a uma emoção
mais profunda, soluçava alto e o seu rosto tomou-se distorcido e
quente e as lágrimas agarraram-se-lhe à pele. Um homem - uma outra
criatura humana, foi o que primeiro lhe acorreu ao pensamento, mas
desprenderam-se dele outras coisas diferentes. O que vou fazer? Estou
teso e despedido... Oh, pai, o que é que te peço? O que vou fazer
com os miúdos... Tommy, Paul? Os meus filhos. E Olive? Minha
querida! Ora, ora, ora... Tens de me proteger daquele diabo que quer
a minha vida. Se a queres, então, mata-me. Tira-ma, tira-ma.
tira-ma.
Em breve esgotou as
palavras, a sensatez, a coerência. A fonte de todas as lágrimas
abrira-se de repente dentro dele, negra, profunda e quente, e elas
jorravam e convulsionavam-lhe o corpo, vergando-lhe a cabeça
teimosa, encurvando-lhe os ombros, retorcendo-lhe o rosto,
enclavinhando-lhe as mesmas mãos com que segurava o lenço. Os seus
esforços para se dominar eram inúteis. O enorme nó de injustiça e
dor que tinha na garganta subiu, e abandonou-se inteiramente; segurou
na face e chorou. Chorou com todo o coração.
Era ele o único, entre
todas as pessoas que enchiam a capela, que soluçava. Ninguém sabia
quem era. Uma mulher disse:
- Talvez seja o primo de
Nova Orleães de que estavam à espera.
- Tem de ser alguém muito
íntimo para se comportar daquela forma.
- Meu Deus, meu Deus! Ser
chorado deste modo - disse um homem que olhou para os ombros de
Wilhelm, que se agitavam fortemente, para o seu rosto fechado e
cabelo loiro encanecido, com uns olhos abertos, brilhantes e
invejosos.
- O irmão do morto,
talvez?
- Oh, duvido muito - disse
outro dos presentes. - Não são nada parecidos. São como o dia e a
noite.
As flores e as luzes
fundiam-se estaticamente nos olhos cegos e molhados de Wilhelm; a
música pesada e oceânica chegava-lhe aos ouvidos. Penetrava-o, ali
onde se escondera no centro de uma multidão, por meio do grande e
feliz olvido das lágrimas. Ouviu-a, e passou além da pena, por meio
de soluços rasgados e lágrimas, para a consumação da derradeira
exigência do seu coração.
Saul Bellow, Agarra o Dia
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