(...) A cerimónia ficou marcada para
o dia seguinte; ele pegou na caneta e, em belas
letras redondas, começou a escrever
os nossos nomes no seu livro.
Naquele preciso momento - deviam ser
umas onze horas - a porta da sala contígua abriu-se com violência.
Um jovem funcionário irrompeu por ali dentro, vestindo o casaco à
pressa: «Os alemães invadiram a Polónia. É a guerra!», gritou em
voz bem alta no silêncio da sala. Aquela palavra bateu-me no coração
como uma martelada. Mas o coração da nossa geração já está
habituado a todo o tipo de rudes golpes. «Não tem de ser já a
guerra», disse eu, com sincera convicção. Mas o funcionário quase
se mostrou rancoroso. «Não», gritou com veemência, «já basta!
Não podemos permitir que todos os seis meses se repita a mesma
coisa! Agora tem mesmo de se acabar com isto!»
Entretanto, o outro funcionário, que
já tinha começado a redigir a nossa certidão de casamento, pousou
pensativamente a caneta. Vendo bem, éramos estrangeiros, reflectiu
ele, e em caso de guerra tornávamo-nos automaticamente estrangeiros
inimigos. Que não sabia se, em tais circunstâncias, o casamento
ainda poderia ser consumado. Que lamentava, mas que, em qualquer
caso, precisava de pedir instruções a Londres. - Seguiram-se ainda
dois dias de espera, de esperança, de receio, dois dias da mais
terrível tensão. E, no domingo de manhã, a rádio anunciou que a
Inglaterra tinha declarado guerra à Alemanha.
Foi uma manhã estranha. Sem dizer
nada, afastámo-nos do rádio que tinha lançado para o quarto uma
mensagem que haveria de sobreviver aos séculos, uma mensagem
destinada a modificar completamente o nosso mundo e a vida de cada um
de nós. Uma mensagem, na qual estava implícita a morte de milhares
daqueles que a tinham escutado em silêncio, o luto e a
desgraça, o desespero e a ameaça para todos nós, e, só passados
muitos e muitos anos, talvez um sentido criador. Era outra vez a
guerra, uma guerra mais terrível e mais abrangente do que alguma
outra o fora à face da Terra. Uma época chegava de novo ao fim, de
novo começava outra época. Ficámos em silêncio no quarto, também
ele tornado de repente completamente silencioso, e evitámos
olhar-nos. De fora, vinha o chilrear despreocupado dos pássaros que
se deixavam levar pelo vento tépido durante os seus leves jogos
amorosos, e as árvores eram embaladas pelo brilho dourado da luz,
como se as suas folhas quisessem tocar-se com a ternura de lábios.
Mais uma vez, a velha mãe-natureza nada mostrava saber das
preocupações das suas criaturas.
Dirigi-me ao meu quarto e juntei as
minhas coisas numa maleta. Se viesse a confirmar-se o que me dissera
um amigo altamente colocado, então nós, os austríacos, iríamos
ser equiparados aos alemães na Inglaterra e teríamos de contar com
as mesmas restrições; talvez nessa noite já não me fosse
permitido dormir na minha cama. Tinha descido de novo um degrau, de
há uma hora para cá já não era apenas um estrangeiro neste país,
mas um enemy alien, um estrangeiro inimigo, banido à força para um lugar onde o
meu coração palpitante não pulsava. Pois seria possível imaginar
situação mais absurda do que a de alguém, que, devido à sua raça
e à sua mentalidade, fora havia muito rechaçado de uma Alemanha que
o estigmatizara como anti-alemão, e que agora, num outro país, e
devido a um decreto burocrático, era integrado à força numa
comunidade da qual, enquanto austríaco, nunca fizera parte? De uma
só penada, o sentido de uma vida inteira tinha-se transformado num
sem-sentido; eu ainda escrevia e ainda continuava a pensar em língua
alemã, mas cada pensamento que me ocorria, cada desejo que sentia
estava com os países que tinham pegado em armas pela liberdade do
mundo. Todas as outras ligações, tudo o que era passado e acabado,
tinha sido dilacerado, destroçado, e eu sabia que, quando esta
guerra chegasse ao fim, tudo teria de apontar para um novo começo.
Pois a tarefa que me tocava mais no fundo e na qual eu tinha
depositado toda a energia da minha convicção ao longo de quarenta
anos, a união política da Europa, fracassara. Aquilo que eu tinha
receado mais do que a própria morte, a guerra de todos contra todos,
estava em marcha pela segunda vez. E numa hora que, mais do que
nenhuma outra, exigia um inabalável sentido de solidariedade, aquele
que apaixonadamente se tinha esforçado uma vida inteira pela união
no plano humano e no plano espiritual, sentia-se mais inútil e mais
só do que nunca, devido a este súbito ostracismo.
Desci uma vez mais à cidade,
disposto a lançar um último olhar à paz. A cidade lá estava,
serena, à luz do meio-dia, e não me parecia diferente do habitual.
As pessoas seguiam o caminho de sempre, no seu passo do costume, sem
pressas, sem se juntarem em grupos faladores. A sua atitude era
domingueiramente calma e descontraída, e por um instante perguntei a
mim próprio: será que afinal ainda não sabem de nada? Mas
tratando-se de ingleses, estavam habituados a controlar as suas
emoções. Não precisavam de estandartes nem de tambores, de barulho
nem de música para reforçarem a sua determinação forte e despida
de patético. Que diferentes tinham sido aqueles dias de Junho de
1914, na Áustria, e que diferente era eu hoje também do jovem
inexperiente daquela época, e que carregado estava eu de
recordações! Sabia o que a guerra significava, e ao olhar para as
lojas bem fornecidas e cintilantes, voltei a ter uma visão
avassaladora das lojas de 1918, vazias e desertas, como que
fixando-nos de olhos esbugalhados. Como num sonho acordado, vi as
longas filas de mulheres desencantadas à porta das lojas de víveres,
as mães enlutadas, os feridos, os estropiados, todo o impressionante
horror de outrora regressando fantasmagoricamente na luz radiosa do
meio-dia. Lembrei-me dos nossos velhos soldados, extenuados e
esfarrapados, voltando do campo de batalha, o meu coração palpitante sentia toda
a guerra passada nesta que hoje estava a começar e que ainda
escondia dos olhares todo o seu horror. E eu sabia: de novo o passado
se ia, de novo ficava reduzido a nada o que fora construído - a
Europa, a pátria comum para a qual vivêramos, estava destruída
muito para lá da nossa vida terrena. Algo diferente começava, uma
nova época, mas quantos infernos e purgatórios ainda teríamos de palmilhar para a
alcançar.
O sol brilhava em toda a sua força e
plenitude. Ao regressar a casa, reparei de repente na minha própria
sombra que me precedia, tal como via a sombra da guerra passada por
trás da guerra presente. Durante todo este tempo, ela nunca mais
saiu do meu lado, aquela sombra, pairando, dia e noite, sobre cada um
dos meus pensamentos; talvez os seus escuros contornos
apareçam também em algumas destas páginas. Mas, em última
análise, cada sombra é também filha da luz, e só quem tenha
vivido a claridade e a escuridão, a guerra e a paz, a ascensão e a
queda, só esse terá verdadeiramente vivido.
Stefan Zweig, O Mundo de Ontem
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