Os cronistas vindouros da
nossa época hão de observar um dia que, no ano de 1937, quase todas
as conversas, em todos os países da nossa apavorada Europa, se
agitavam, invariavelmente, em torno da possibilidade ou não
possibilidade de uma nova guerra mundial. Era inevitável ser este o
tema fascinante de todos os encontros; por vezes, tinha-se a sensação
nítida de que não eram já as pessoas que denunciavam o seu receio
em suposições e esperanças, mas a própria atmosfera, o ar do
nosso tempo, excitado. sobrecarregado de íntimas vibrações, em
busca de palavras, em busca de expressão. Iniciara o debate o dono
da casa, advogado de profissão e, por carácter, por natural
tendência, homem convicto da razão que sempre lhe assistia; provou,
com os habituais argumentos, o habitual disparate de que a nova
geração tinha conhecimento da guerra e já se não deixaria
arrastar para esta hecatombe como se deixara arrastar para a outra.
Já durante a mobilização,
as espingardas se recusariam a disparar; sobretudo os antigos
soldados da frente, como ele, esses ainda não tinham esquecido o que
os esperava. Irritou-me a certeza idiota com que este homem, à hora
em que dezenas, centenas de milhares de fábricas se ocupavam em
produzir gases venenosos e matérias explosivas, afastava a
possibilidade de uma guerra, com o mesmo gesto indolente com que o seu
dedo fazia cair a cinza do cigarro.
- Não se deve acreditar
sempre no que desejamos - intervim eu, em tom decidido.
Os ministérios e
organizações militares que dirigem a grande aparelhagem bélica não
se deitaram a dormir; enquanto nós nos adormentávamos com utopias,
ocupavam eles o tempo de paz a organizar as massas antecipadamente,
e, por assim dizer, a prepará-las, a tê-las na mão. Já agora, no
seio da paz, graças à perfeição técnica da propaganda, o
servilismo é vasto e atingiu proporções tão inacreditáveis, que,
é certo, absolutamente certo, desde o momento em que a rádio
projete para dentro de cada casa o aviso de mobilização, em parte
alguma se esboçará a menor resistência. "O átomo homem, como
vontade, não existe hoje." Naturalmente, todos eram de opinião
contrária; segundo o velho hábito, pelo instinto da própria
conservação, o homem procura escapar aos perigos que a consciência
lhe aponta, declarando-os não existentes; é claro que tal otimismo
barato, involuntariamente, mais se afirmara em face de um jantar,
sumptuosamente servido no aposento próximo.
(...)
Eu ouvia surpreendido,
interessado, sobretudo, pela veemência com que este homem singular
falava.
- Não nos deixemos
iludir. Se hoje, em qualquer país, mandassem rufar um tambor,
convidando ao alistamento para uma guerra exótica, a guerra na
Polinésia ou em qualquer recanto da África, logo se precipitariam
milhares de homens, centenas de milhares, sem saberem porquê, talvez
somente pelo prazer de se evadirem de si próprios, ou por condições
particulares pouco agradáveis. Em todo o caso, vejo-me compelido a
considerar nulo o facto da resistência contra a guerra. A recusa de
um único isolado em face de uma organização exige sempre uma
coragem mais forte do que o deixar-se arrastar, isto é, a coragem
individual diminui cada vez mais nesta nossa época de constante e
progressiva mecanização. Na guerra, quase que só se me deparou exclusivamente o
fenómeno da coragem coletiva, a coragem dentro das fileiras. Todo
aquele que se ponha a examinar com a lente descobre componentes
singulares: muita vaidade, muita irreflexão e até aborrecimento.
Antes de mais nada, muito medo ... sim, meus senhores, medo de ficar
para trás, medo de ser troçado, medo de ficar isolado e, mais que
tudo, medo de pertencer à oposição, em face do ímpeto que projeta
os outros para a frente. A maior parte desses que, durante a campanha, eram
considerados mais valentes, conheci-os pessoalmente e, na vida civil,
eram tristes heróis. É claro que - acrescentou, virado para o dono
da casa, que dava sinais de evidente descontentamento - de forma
alguma me excluo a mim.
Stefan Zweig, Coração Impaciente
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