Todos
nós entendemos que a arte deve ser livre.
Mas raro nos damos conta de que esse ser livre tem de ser em nome do
que nos seja indiscutível, ou seja, daquilo em face do qual não
se é livre.
Toda a liberdade só tem sentido contra
alguma coisa que se nos opõe. Mas o que nem sempre se pensa é que
só tem sentido ser-se contra, se o formos em
nome de.
Ser livre em relação a tudo equivale a sê-lo em relação a nada,
porque nada isso pode justificar. Ser livre em relação a tudo é
ter uma liberdade inútil, porque inteiramente disponível. Ser livre
em relação a tudo é igual a ser determinado, porque num caso e
noutro não há escolha nenhuma, A liberdade é então uma função
sem destino e vira-se para si própria como um estômago vazio. Assim
ela se destrói no seu significado pela autofagia. O nosso tempo
conhece esse destino e o acto de desespero é a forma de o anular. O
terrorista, na realidade, inventa um motivo
para restaurar a liberdade na sua função própria, como os
finalistas buscavam uma finalidade para tudo o que existe. Aí se
insere, como sabemos, o impasse da arte. Porque ela não serve
para nada, mas teve sempre alguma coisa em função da qual existisse
para não servir. E não apenas o que fosse uma função
representativa. Não é curioso que isso aconteça com a própria
música? Porque ela é, de sua natureza, uma arte «formal». Mas a
sua ausência de um «motivo» não o é de um fundamento, de uma
razão de ser formal em que nos reconheçamos. Não deriva isso de um
«hábito» a que nos não acomodámos ainda, mas da destruição de
um valor que lhe subjaz enquanto música, que invisível a orienta e
fica em nós como o espírito que a anima. Como em toda a obra de
arte. Porque em toda ela o que em nós fica não é bem o que lá
está,
mas a alma que a fez ser e fica a ressoar em nós, mesmo quando já
lhe esquecemos o motivo. Todo o destino humano se insere entre o
«porquê» e o «para quê». Mas esses limites são os de uma
liberdade que deseja cumprir-se. Um rio define-se nos limites que lhe
demarcam um percurso e sem eles seria uma desordem espraiada. Nós
exigimos a liberdade mas igualmente a sua razão de ser. Que é que
justifica uma luz que nada ilumina e se perde no vazio? Eis porque é
um erro curioso esse de supor-se que uma arte religiosa não é uma
arte livre. Ora ela só o não é, se estiver a vigiá-la não uma
crença mas um inquisidor. É-se livre contra alguma coisa, mas em
nome de outra. Fora disso é-se uma estupidificação da Natureza que
é de si já bastante estúpida. Resta apenas o que nos resta e é a
evidência de que a vida humana é uma razão bastante na sua
ausência de razão, para toda a falência de razões. É pouco? É o
que temos. Só nos não habituámos a que ela estivesse acima de tudo
quanto foi acima. A aceitação da gratuidade. O milagre inútil. Mas
assim mesmo um milagre. Não há pergunta sobre o para quê de uma
flor que lhe tire o encantamento. O sentido do ser é o ser. E se nos
calássemos?
Vergílio
Ferreira, Pensar
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