"...adormeci
tontamente num banco do jardim, e a tonteria não foi ter adormecido,
foi o lugar escolhido para tal sendo prova disso o facto de ter
acordado quando uma caca de corvo me acertou em cheio na ponta do
nariz, limpei-me e verifiquei cabelo, equipamento, roupa, mas não,
fora apenas um ataque, certeiro e apesar de tudo bondoso, se fosse no
cabelo dava muito mais trabalho a tirar. Eu não percebo nada de
animais mas simpatizo com os corvos, acho até que devem ser os
bichos mais espertos que existem, para já basta observá-los para se
perceber que falam uns com os outros, falam mesmo, talvez com poucas
palavras, assim como os polícias ingleses, poucas palavras mas
significativas, e além disso protegem-se uns aos outros, é vê-los
cair do céu às centenas se uma cria está abandonada ou um deles
foi ferido e se arrasta no chão. Em Bombay, eu e o Peter passámos
uma manhã inteira, da janela do quarto onde estávamos, a tentar
acertar com molas de roupa nos corvos que esvoaçavam no pátio
porque a dona do hotel despejara lá uns restos de comida. Mas qual
quê? De cada vez que levantávamos o braço, ou até olhávamos para
eles com ar de quem faz pontaria, desatavam a voar. Uma ocasião
ficámos imóveis, de braço no ar armado de mola, ficámos, e
ficámos, e ficámos, e eles nada. Mal nos cansámos e baixámos os
braços, um corvo desceu, zás!, e levou um pedaço de comida. Eu
fiquei com tanta raiva que cheguei a atirar um punhado de molas,
atingi um de raspão e ele mandou uma risada de corvo, como quem diz
até que enfim, ó palerma!"
Paulo Varela Gomes, Era uma vez em Goa
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