Lembro-me
sempre, a este e outros propósitos, da ocasião em que assisti a uma
exibição pública do famoso documentário Portugal: Um Retrato
Social (...). Os espectadores não
tinham tido qualquer experiência directa de Portugal ou do período
salazarista. As imagens, a preto-e-branco, passavam diante deles
mostrando um país triste, oprimido, pobre. Às referências à
miséria, ao subdesenvolvimento, à repressão, somavam-se, talvez
para tornar a coisa mais expressiva, frivolidades sobre o comprimento
obrigatório das saias das raparigas ou a licença necessária para
se ter isqueiro. A pobreza e a ditadura não bastaram aos autores do
documentário; foi ainda preciso sugerir que se vivia numa opressão
e tristeza permanentes. Comecei a ficar seriamente irritado e saí da
sala, não fosse ter de intervir no debate que se seguiu à projecção
para dizer que aquilo era uma demagogia pegada e que a vida das
pessoas nos anos de 1960 e início da década de 1970 não era nada a
preto-e-branco. Por incrível que pareça, Portugal era a cores. Até
eu, o meu irmão, as minhas irmãs, com o pai preso depois de uma
tentativa de golpe anti-salazarista da qual saiu à beira da morte, a
mãe também presa, uma vida material muito difícil, até eu tive
dias e noites de praia, namorei, ouvi música pop, dancei naquilo que
na altura se chamavam boîtes, usei o cabelo comprido e roupas
extravagantes, fumei charros, tudo isso no Portugal salazarista ou
caetanista. Até eu tive momentos de felicidade, e não foram poucos,
embora fosse muito menos pobre que os pobres, esses que também
tiveram momentos de felicidade. O que me irrita em histórias do
passado como a daquele documentário e outros semelhantes é a
redução da dureza da vida a uma história para assustar crianças,
insultuosa para as pessoas que sofreram de facto essa dureza, mas
também para as outras, tratadas como espectadores tontos de uma
história da qual a visão a preto-e-branco retira toda a verdade.
Paulo Varela Gomes, Preto-e-Branco, em Ouro e Cinzas
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