Tocou a Sonata
para violoncelo em mi menor, opus 38,
de Brahms. A sua boa cara estava estranhamente voltada para o
interior, o seu bigode grisalho, nos lábios estendido, já não era
um bigode, mas uma sombra cinzenta; as rugas das suas faces já não
estavam dispostas da mesma maneira, já não tinha cara, a sua cara
estava quase invisível, era talvez uma cinzenta tarde de Outono,
pouco antes de nevar, E quando uma lágrima lhe rolou ao longo do
nariz, já não era também uma lágrima. Só sua mão ainda era uma
mão. Dir-se-ia que a arcada lhe captara toda a vida, o arco subia e
baixava sob o impulso das moles e trigueiras ondulações de um rio
de sons que cada vez se alargava mais, e ia cercando com suas vagas
aquele que tocava, a tal ponto que este parecia só e como que
separado dos outros. Tocava. Era provável que não passasse de um
simples dilettante,
mas isso não podia deixar de lhe ser indiferente a ele, indiferente
ao comandante e também, com certeza, a Kuhlenbeck, pois naquela
altura, o mutismo ruidoso da época, o lampejo mudo e impenetrável
desse alarido, interposto entre o homem e o próximo, muro que a voz
do homem não podia atravessar nem de um lado nem do outro, de tal
modo que o homem não podia evitar um arrepio — o mutismo medonho
da época fora abolido, o próprio tempo fora abolido e ganhara a
forma do espaço que os encerrava a todos no momento em que o
violoncelo de Kessel ressoava, fazia ecoar o som, edificando o
espaço, enchendo o espaço, enchendo-os a eles próprios.
Hermann Broch, Os Sonâmbulos
Sem comentários:
Enviar um comentário