No fundo, que
maravilhoso fenómeno que são os olhos do homem, essa jóia entre
todas as formações orgânicas sobretudo quando concentra o seu
brilho húmido sobre outra forma humana! Preciosa gelatina composta
duma substância tão comum como a do resto da criação, ela prova,
tal como as pedras preciosas, que as diversas matérias não têm
importância em si e que tudo está no seu conjunto engenhoso e
feliz. Mucilagem encaixada numa cavidade óssea, uma vez privada de
alma, ela está destinada a apodrecer na tumba e a dissolver-se de
novo em lama líquida. Mas enquanto subsistir nela a faísca da Vida,
saberá lançar admiráveis pontes etéreas por cima de todos os
abismos de incompreensão que se possam interpor entre dois seres
humanos. Das coisas delicadas e fluídas, convém falar com
delicadeza e fluidez; por isso formularei aqui, com precaução, uma
observação acessória. Em resumo: a felicidade só se pode
encontrar nos pólos extremos das relações humanas onde as palavras
não existem ainda ou onde já não existem — no olhar e nos
abraços. Só lá se situam o incondicional, a liberdade, o mistério
e o entusiasmo irreprimível. Tudo o que existe no intervalo, como
contacto e relações sociais, é tíbio e fraco, determinado,
condicionado e limitado pelo formalismo e pela tradição burguesa. A
palavra, aí torna-se senhora — a palavra, essa intermediária baça
e fria primeiro produto duma civilização domesticada e moderada, e
tão totalmente estranha à ardente e muda esfera da natureza que
cada vocábulo é, de qualquer maneira, um frase por si e em si.
Thomas Mann, As Confissões de Félix Krull, Cavalheiro de Indústria
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