Oh,
o Homem e o animal são próximos parentes! Mas se nós falamos da
origem, o Homem nasceu do animal, pouco mais ou menos, como o
orgânico do inorgânico. Alguma coisa se acrescentou a isso.
-
Acrescentou? E o quê?, se me é permitido perguntar.
-
Pouco mais ou menos o que foi acrescentado quando o ser emergiu do
nada. Ouviu alguma vez falar da geração espontânea?
—
Anseio por ouvir
falar.
(...)
—
Não houve uma
geração espontânea, mas três: o Ser saindo do Nada, a Vida
proveniente do Ser e o nascimento do Homem.
(...)
Curvado
para a frente, ouvia o meu curioso companheiro de viagem falar-me do Ser, da Vida, do Homem e do Nada, onde tudo tinha sido engendrado e
onde tudo regressaria. Ele dizia que, sem nenhuma dúvida, a vida
terrestre não era senão um episódio relativamente efémero, tal
como o ser era outro entre dois nadas. O ser não tinha existido
sempre e não existiria sempre. Houvera um começo e haveria um fim,
mas com ele abolir-se-iam o espaço e o tempo, que existiam
unicamente em função dele e só por ele estavam ligados. Kuckuck
disse que o espaço não era senão a ordem ou as relações das
coisas materiais entre elas. Sem objetos para o ocupar não haveria
nem espaço nem tempo porque o tempo não era outra coisa senão uma
hierarquia de incidentes (facilitada pela presença dos corpos), o
produto do movimento de causa e efeito, cujo decorrer dava ao tempo
uma direcção sem a qual ele não existiria. Ora a abolição do
espaço e do tempo era precisamente a definição do nada. Este, sem
dimensões em todas as acepções da palavra, uma eternidade
estática, tinha sido passageiramente interrompido pelo ser espacial
e temporal. A este ser fora concedida uma dilação, alguns iões a
mais do que à vida, mas um dia ele acabaria, seguramente, e também
seguramente a esse fim corresponderia um começo. Quando é que o
tempo, o devir, tinham começado? Quando o primeiro sobressalto do
ser tinha jorrado do nada pela vontade dum "Que
isso seja!", que já implicava como uma irrefutável necessidade
um: "Que isso desapareça!" Talvez o «quando» do devir
não fosse tão recuado no passado, nem o «quando» do aniquilamento
tão afastado no futuro. Talvez não se tratasse senão de alguns
biliões de anos. Contudo, o ser celebrava a sua festa tumultuosa nos
espaços incomensuráveis que eram a sua obra e onde ele formava as
distâncias fixadas num vácuo gelado.
E
Kuckuck falou-me do gigantesco teatro desta festa, o universo filho
perecível do eterno nada, cheio de corpos materiais sem número:
meteoros, luas, cometas, nebulosas, milhões e milhões de estrelas
em interacção e ordenados uns em relação aos outros segundo a
actividade dos seus campos de gravitação, em massas, nuvens,
galáxias e supersistemas de galáxias, cada uma formada de
inumeráveis sóis em ignição, de planetas girando sobre si mesmo,
de gases rarificados, de campos de escombros frios feitos de
escórias, de pedra e de poeira cósmica.
(...)
Disse-me também que a nossa Via Láctea, uma
entre biliões de outras, englobava o nosso sistema solar local,
quase na sua franja, um pouco como uma florinha nascida no buraco dum
muro, a trinta anos-luz do seu centro, com a sua esfera de fogo
gigantesca relativamente insignificante chamada o Sol (embora ele só
merecesse o artigo indefinido) e os planetas dominados pelo seu campo
de atracção, entre os quais a Terra. Esta tinha o prazer e o
trabalho de girar sobre o seu eixo à velocidade de mil seiscentos e
setenta quilómetros por hora e de fazer, à cadência de trinta
quilómetros por segundo, a volta do Sol. Assim formava ela os seus
dias e os seus anos - os seus próprios, bem entendido, porque havia
outros. O planeta Mercúrio, por exemplo, o mais próximo do Sol,
executava a sua evolução em trinta e oito dos nossos dias, tempo em
que girava uma única vez sobre si mesmo, de forma que para ele o ano
e o dia eram apenas um. Podia-se ver por aqui que acontecia com o
tempo o que acontecia com a gravidade, que também não era
universalmente válido. Por exemplo, no branco satélite de Sírius,
que era apenas três vezes maior do que a Terra, a matéria tinha uma
tal densidade que um centímetro cúbico pesaria entre nós cerca de
sessenta quilogramas. A substância, os nossos maciços rochosos, o
nosso corpo humano, não eram, em comparação com ele, senão uma
ligeira espuma sem consistência.
Enquanto
a Terra — tive a boa fortuna de o aprender- se apressava, girando
em volta do Sol, a sua Lua girava em volta dela. Todo o nosso sistema
solar se movia no quadro dum sistema estelar mais vasto embora ainda
muito local e que, aliás, por seu turno, não ficava inactivo —
porque esse sistema de interacção se movia a uma velocidade enorme
no interior da nossa Via Láctea, a qual, em relação com as suas
longínquas irmãs, devorava o espaço também com uma avidez
inimaginável. E tudo isso, essas distantes combinações materiais
do Ser, tão rápidas que a velocidade dum obus por comparação com
ela não era senão imobilidade, dispersavam-se em todas as direcções
no nada para onde elas levavam impetuosamente o espaço e o tempo.
Essas rotações, esses turbilhões imbricados e circulares, essa
contracção de nebulosas condensadas em corpos, essa ignição, esse
flamejamento, esse arrefecimento, essa explosão, esse retorno à
poeira, essa queda e essa perseguição sem fim, saídos do nada e
suscitando o nada, tudo isso, que talvez fosse melhor ter ficado
adormecido e esperava tornar a cair no sono — era o Ser, igualmente
chamado Natureza, e era Um, por toda a parte e em tudo. Rogou-me que
não duvidasse que todo o ser, e a Natureza, formavam uma unidade
circunscrita em si, desde a simples matéria inanimada, até à
mulher com braços dum belo contorno, até à forma de Hermes. O
nosso cérebro humano, a nossa ossatura, eram os mosaicos das mesmas
moléculas elementares de que se compunham as estrelas, a poeira
cósmica e as sombrias nuvens movediças do espaço interestelar. A
vida saída do Ser, como este jorrara do Nada — a vida, flor do Ser
—tinha todas as suas substâncias fundamentais em comum com a
natureza inanimada e não podia apresentar uma só que fosse só
dela. Não se poderia dizer que ela se diferenciava sem equívoco do
ser simples inanimado. Entre ela e o inanimado a fronteira continuava
imprecisa. A célula vegetal apresentava a possibilidade natural de
transformar as matérias pertencentes ao reino mineral com a ajuda do
éter solar, de tal forma que estas tomavam vida nela. A faculdade de
geração espontânea da clorofila mostrava-nos como o inorgânico
pode dar origem ao orgânico. Os casos inversos não faltavam, aliás,
como o testemunham os minerais formados pelos ácidos silícicos
animais. Futuras montanhas da terra firme cresciam do mais profundo
dos mares, provenientes dos despojos dos esqueletos de minúsculos
seres animados. Na meia-vida ilusória dos cristais líquidos
processava-se manifestamente a passagem dum reino natural a outro. E
sempre que a Natureza, para nos mistificar, simulava o orgânico no
inorgânico (como nas flores do enxofre ou nas flores do gelo) ela
pretendia ensinar-nos a sua unicidade.
O
orgânico, esse mesmo, não conhecia linha de demarcação muito
nítida entre as suas diversas variedades. O animal transformava-se
em vegetal quando se ligava uma haste e adoptava a forma simétrica
duma flor — o vegetal transformava-se em animal quando atraía e
devorava os bichos em vez de sugar a vida no mineral. O Homem tinha
nascido do reino animal, talvez por derivação, como se dizia, mas
em realidade, pela contribuição dum elemento novo ao qual era tão
difícil dar um nome como à essência da vida ou à aparição
original do ser. Mas o ponto em que ele se transformava em Homem e já
não era animal (ou antes, já não era unicamente animal) era
difícil de precisar. O Homem guardava a sua animalidade da mesma
forma que a vida mantinha nela o inorgânico, porque nos seus últimos
materiais de construção - os átomos- ela chegava ao
«não-mais-orgânico" ou ao «ainda-não-orgânico». Contudo,
lá bem no fundo, no átomo imperceptível, a matéria
volatilizava-se no imaterial, no que já não era corporal. E isto
porque o que se elaborava aí e de que o átomo formava a
superestrutura era quase debaixo do ser e não ocupava um lugar
determinado no espaço nem uma porção de espaço que se pudesse
definir como honestamente convém a um corpo. O ser nascia do
«apenas-já-existente», e mergulhava no «apenas-ainda-existente»...
Na
Natureza todas as formas, desde as mais antigas e mais sumárias,
quase ainda imateriais, até às mais evoluídas e vivas, estavam
reunidos e coexistiam: a nebulosa, a pedra, o verme e o homem. Muitas
das formas animais tinham desaparecido e já não havia répteis
voadores nem mamutes. Isso não impedia que ao lado do homem
continuasse a viver o animal primitivo, apenas provido duma forma: o
unicelular, o micróbio, o infusório, com uma entrada e uma saída
no seu corpo-célula. Não era preciso mais para ser um animal. E,
para ser um homem, não era geralmente preciso muito mais.
(...)
-
O «progresso» existe,
existe, sem dúvida nenhuma. Do Pithecantropus erectus a Newton e a
Shakespeare, havia um longo caminho nitidamente ascendente. Mas pelo
que se refere ao comportamento do resto da Natureza, esse era também
do mundo dos humanos. Neste caso havia sempre a reunião de tudo, dos
estados mais diversos da cultura e da ética. Desde o espécime mais
primitivo até ao mais recente, do mais estúpido ao mais
inteligente, do mais primário, obtuso e selvagem até à evolução
mais alta e mais perfeita, tudo coexistia sempre neste mundo. Muitas
vezes o superfino, cansado de si mesmo, enamorava-se do primitivo e,
embriagado, recaía na selvajaria. E basta de falar a este respeito.
Mas
era preciso dar ao Homem o que lhe era devido, e Kuckuck não me
escondia ... o
que distinguia o Homo Sapiens do resto da Natureza, da Natureza
orgânica e do ser no estado simples. Esta distinção era
constituída pelo elemento que se tinha provavelmente acrescentado
quando este ser tinha saído da animalidade. Era a noção do começo
e do fim.
Tinha
pronunciado, eu próprio, a palavra mais humana ao dizer que o facto
de aprender que a vida não era senão um episódio me dispunha em
seu favor. Com efeito, o efémero, em vez de a desvalorizar, conferia
precisamente a toda a existência sobre a Terra o valor e a dignidade
que a tornavam digna de ser amada. Só o episódico, só o que tinha
um começo e um fim era interessante e despertava a simpatia,
justamente porque era efémero. Aliás, isto era assim para tudo. O
efémero impregnava o ser cósmico, e só o nada era eterno e,
portanto, indigno de simpatia. O nada donde a Vida e o Ser provinham
para sua alegria e seu tormento.
Ser
não significava bem-estar. Era uma alegria e um tormento e todo o
ser integrado no espaço e no tempo, toda a matéria, participava,
mesmo em estado de profunda letargia, nessa vida, nesse tormento, no
sentimento que inclinava o Homem, detentor da sensibilidade mais
acordada, para a simpatia universal. A "simpatia universal»,
repetiu Kuckuck, apoiando-se com as mãos no tampo da mesa para se
levantar. Olhou-me com os seus olhos estrelados e fez-me sinal com o
queixo.
- Boa
noite, (...) Durma
bem. Sonhe com o Ser e com a Vida! Sonhe com o tumulto das galáxias
que, porque existem, sofrem a sua existência na alegria e no
tormento. Sonhe com o braço dum belo contorno, mas duma ossatura
primitiva e com a flor dos campos que sabe, graças ao éter solar,
extrair o inanimado e, transformando-o, incorporá-lo. E não se
esqueça de sonhar com as pedras, com o rochedo que jaz na torrente
há milhares de anos, lavado e refrescado pelo rebentamento da espuma
e das águas. Considere com simpatia a sua existência como ser mais
consciente perante o mais profundamente inconsciente e saúde-o na
criação. Ele conhece o bem-estar, se o ser e o bem-estar se podem
conciliar. Desejo-lhe uma boa noite!
Thomas Mann, As Confissões de Félix Krull, Cavalheiro de Indústria
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