Era um pequeno tratado das
paixões e, sublinhada com uma tinta parda de tão antiga, havia uma
frase que o impressionou «A memória é a fonte de todas as nossas
paixões, e sobretudo da do amor.» O anónimo que no ano de 1775
escrevera aquilo era decerto uma pessoa especial. 1755 fora uma data
também especial. Com as velhas paredes dos palácios setecentistas
de Lisboa caíra também uma certa casta vigorosa e subtil do
português para quem a sensibilidade era o estribo das suas empresas.
Depois o Marquês impusera no reino a sua férrea marca burguesa. A
moral sucedeu à doce inconstância da alma de que a inspiração dum
povo aproveita; o bom-senso tomou o lugar do bom-gosto. A paz de
espírito foi assegurada pelo uso de regras de vida minuciosas e
severas. A gente honesta, amante do meio-termo, proliferou, fez bons
negócios, e a insipidez que o cálculo protege passou a ignorar a
ambição no seu alto sentido. Camilo saía pelas vinhas nas tardes
embaciadas de nevoeiro, e José Augusto dizia-lhe quais as castas de
uva de qualidade desaparecidas; donzelinho, terrantes, samarrinho,
lourela, abelhal, tudo erarn castas extintas. E castas de homens,
quais eram acabadas desde esse tempo de 1531, quando Rui Fernandes,
tratador das lonas e bordates de El-Rei, fazia a sua descrição?
Camilo olhou com uma curiosidade grosseira aquele rapaz que lhe vinha
contar um diálogo sério. Donzelinho, folgosão, bastardo,
trincadente, burral, mourisco — de que casta? Um sentimento ufano e
selvagem reflectiu-se nesse olhar, ao pensar nas cartas de Fanny.
Agustina Bessa-Luís, Fanny Owen
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