Poder dizer: «Chamo-me A, e sou-vos estrangeiro. No entanto, amo-vos, suporto-vos e odeio-vos, sou apenas eu, nos contornos precisos da minha pele. O meu corpo não é uma aparência, nenhuma grandeza se dissimula por detrás dele, sou isto e nada mais do que isto, e não há nenhum rasgão patente ou escondido por onde introduzir o desejo. Só sofro de multidão, e quero reunir-me não para ser leve, mais inteligente e ir pairar sobre os cumes, mas para olhar a montanha, daqui onde estou, admirá-la e pôr-me a trepá-la ... Trepá-la e ir de convulsões em visões, de falhanço em glória, de furor em sofrimento, de fulgor em torpeza ...
Como vedes, não é nem a calma, nem a serenidade que eu busco, é saber inventariar o meu sofrimento, encastoá-lo como um diamante, e ver através dele as transparências perdidas da minha grandeza. Não pretendo chegar a nada, mas ser insuflado pelo porvir. Chegar é ter de voltar. Não quero senão trepar e, de iluminação em desamparo, saber que existo. Que não sou mais uma imagem acrescentada às imagens do mundo para embelezar um cenário, nem uma imagem de síntese, numérica, feita de milhares de milhões de números que não choram, não sofrem, não mentem, nunca têm pesadelos ... Quero ser A e A todo, uma letra, um universo, reaprender a mentira, não para me dissimular, mas para transfigurar o mundo, pô-lo a saque e aí colher o que ele encerra de fulgurância e de estranheza. Não estendo a mão, mantenho-a aconchegada a mim para que ela seja um punho, uma cisalha ou o bálsamo para uma outra solidão. Quero conhecer um verdadeiro fim, para saber o que é um verdadeiro começo, e, para tal, queimar as minhas cartas, destruir o que é ainda apresentável, retalhar as aparências e conhecer o Inverno mais longo, o frio mais áspero, desembaciar-me deste olhar e pôr no lugar dos meus olhos dois buracos vazios por onde deixe penetrar a luz, me deixe invadir por ela, e irromper deste desastre, conectado às forças que surdem de toda a parte, à margem dos estratagemas e das balanças do bem e do mal. Contemplar enfim o meu rosto, e que ele me seja assustador, desfigurado pela luz ofuscante, que desbotou os traços, anulou os seus relevos. Um rosto humano, esfarrapado, que nada diz, nada faz lembrar, escavado de espinhos e de torrentes, jorrante; o rosto do mundo quando a guerra passou, quando a noite se rasga e nasce o dia; gotas de orvalho em cada haste de erva ... Um rosto vivo, sem máscara nem fingimento, contando a escalada de uma montanha de urzes e de sarças, onde a garra das aves de rapina sabe melhor que ninguém afagar o corpo, porquanto aí se misturam o sangue, a macieza das suas penas e o regelo das neves eternas de onde elas vêm ...
Que tudo seja branco e escrever as primeiras palavras da minha vida.»"
Yves Simon, O Viajante Magnífico
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