sábado, 17 de novembro de 2018




Vincent van Gogh, Vineyards at Auvers, 1890

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Era um pequeno tratado das paixões e, sublinhada com uma tinta parda de tão antiga, havia uma frase que o impressionou «A memória é a fonte de todas as nossas paixões, e sobretudo da do amor.» O anónimo que no ano de 1775 escrevera aquilo era decerto uma pessoa especial. 1755 fora uma data também especial. Com as velhas paredes dos palácios setecentistas de Lisboa caíra também uma certa casta vigorosa e subtil do português para quem a sensibilidade era o estribo das suas empresas. Depois o Marquês impusera no reino a sua férrea marca burguesa. A moral sucedeu à doce inconstância da alma de que a inspiração dum povo aproveita; o bom-senso tomou o lugar do bom-gosto. A paz de espírito foi assegurada pelo uso de regras de vida minuciosas e severas. A gente honesta, amante do meio-termo, proliferou, fez bons negócios, e a insipidez que o cálculo protege passou a ignorar a ambição no seu alto sentido. Camilo saía pelas vinhas nas tardes embaciadas de nevoeiro, e José Augusto dizia-lhe quais as castas de uva de qualidade desaparecidas; donzelinho, terrantes, samarrinho, lourela, abelhal, tudo erarn castas extintas. E castas de homens, quais eram acabadas desde esse tempo de 1531, quando Rui Fernandes, tratador das lonas e bordates de El-Rei, fazia a sua descrição? Camilo olhou com uma curiosidade grosseira aquele rapaz que lhe vinha contar um diálogo sério. Donzelinho, folgosão, bastardo, trincadente, burral, mourisco — de que casta? Um sentimento ufano e selvagem reflectiu-se nesse olhar, ao pensar nas cartas de Fanny.
Agustina Bessa-Luís, Fanny Owen







Casa Museu de Camilo Castelo Branco, em Seide
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Basta ver como Camilo usava a língua portuguesa para ficarmos informados sobre a sua vontade de poder, de conquistar a atenção, a fama e alma da Praça. Isso acontece com o espírito que é ávido porque é extremamente sobrecarregado de talentos. Aconteceu com Shakespeare, por exemplo. A maneira como dispõe as frases, como escolhe e arremessa as palavras tem muito duma estratégia guerreira. Utiliza o alfabeto como balas e os versos como trincheiras. Julieta fala um tom acima da sua estatura feminina; Hamlet fala para a posteridade e não para a sua pequena corte de intrigantes. Camilo quando mobiliza as paixões dos Brocas, sabe que aquilo não é real, é apenas uma ofensiva contra a mediocridade e a satisfação do meio-termo.
Agustina Bessa-Luís, Fanny Owen

sábado, 10 de novembro de 2018




Camille Pissarro, Portrait of Rodo Pissarro Reading, 1900

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"Et je comprends que ce don ou cette grâce de penser de vaste façon, et dans de nombreuses combinaisons que cette manière magnifique et singulièrement bénéfique de regarder le monde pour ainsi dire sous différentes facettes, seul peut en jouir celui qui a accueilli un jour en lui, en faisant sa propre expérience, les nombreux pays, les nombreux hommes et les nombreuses époques que les livres accueillent, et qui a alors été bouleversé de comprendre à quel point est étroite la vision du monde de qui s'interdit de lire. (...) Car, lorsque nous lisons, que faisons-nous sinon vivre intérieurement avec des êtres étrangers, sinon voir avec leurs yeux, penser avec leurs cerveaux? Et je me souvins alors toujours plus vivement, et avec toujours plus de gratitude, ému et reconnaissant, des bonheurs innombrables ressentis en compagnie des livres. Je me souvins de décisions importantes, que je devais à des livres, de rencontres avec des écrivains depuis longtemps disparus, qui étaient pour moi plus importants que nombre d'amis et de femmes ; je me souvins de nuits d'amour avec des livres, où le sommeil, à force de plaisir, avait été oublié; et plus je réfléchissais, plus je comprenais que notre univers spirituel est fait de millions de monades d'impressions uniques, dont une minorité seulement est le fruit du vu et du vécu — mais dont la grande majorité est due aux livres, au lu, au transmis, à l'appris."
Stefan Zweig, Das Buch als Eingang zur Welt, in Volker Weidermann, Ostende 1936. Un Été avec Stefan Zweig

segunda-feira, 30 de abril de 2018




James Bulwer, Porto Santo, 1825
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No dia em que António José saiu da ilha, por mar e levando um destino errante (pensando em chegar a Mindanao, onde talvez achasse uma pérola negra na frincha do soalho, ou então o arpão de Queequeg em New-Bedford, um arpão mágico capaz de deter nos mares o horrível Leviatã), olhou para a mancha verde da terra e viu, na estrada rasgada na rocha, uma fileira de hornens e mulheres. Pareceu-lhe gente conhecida, petrificada nesse instante no coração da tarde, moldada pela marcha do tempo em que cada dia é um dia de juízo final. Gonçalo Trastâmara, filho da Beltraneja, com a mão no rosto que assim mascarava. Tristão das Damas, de hercúleo peito, brando no morrer e na vida bravo. O conde de Carvalhal, de testa suada pela angústia do jogo, pobre no leito adamascado. Rosalina, a baronesa de Madalena do Mar, de muitas mortes padecida e de enigmas conservada. Os Cossart, huguenotes de França, loiros como a nobreza de Pau. Miss Phelps, fabricando bordados com riscos de alegra-campos. João de Barros, passageiro clandestino numa história que não chegou ao fim. Rosamund, Margô, Elvirinha e outra gente coroada como Elisabeth da Áustria, escalando a serra num cavalo de empréstimo ou marchando durante dez horas pelos caminhos de hidranjas bravas. Leopoldina, no jardim de Palheiro-Ferreiro, com a sua tristeza de noiva em transe de exílio. Os ghettos de Câmara de Lobos, as esquadras de navegação terrestre vestidas de branco, como para naufragar com honra debaixo das bananeiras-anãs. António José Lago fez um gesto de adeus. Respondeu-lhe da falésia um suspiro como o dum vulcão submerso. Era o génio da ilha que lhe apresentava despedidas. Ele disse que ouvia um baque de machado no cerne do dragoeiro na ilha de Porto Santo.
Agustina Bessa-Luís, A Corte do Norte




Wassily Kandinsky, Moscovo I, 1916
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Ninguém faz história, ninguém a vê, do mesmo modo que ninguém é capaz de ver crescer a erva na terra. As guerras, as revoluções, os czares, os Robespierre, são os seus fermentos orgânicos, são a sua levedura. As revoluções produzem homens de acção, fanáticos munidos de antolhos, génios limitados. Em poucas horas, em poucos dias, deitam a terra a velha ordem estabelecida. As revoluções duram semanas, anos; mas, depois, durante décadas ou durante séculos, venera-se como coisa sagrada esse espírito de mediocridade que as impulsionou.
Os seus lamentos acerca de Lara eram também lamentações sobre esse Verão distante passado em Meliuzeiev, quando a revolução era um deus descido do céu à terra, o deus desse Verão, quando cada um era louco à sua maneira, quando a vida de cada um existia por si mesma e não para confirmar a exactidão da política suprema. Enquanto fazia estas anotações verificou de novo e desenvolveu o tema de que a arte serve sempre a beleza e que a beleza reside na felicidade de possuir uma forma. Por sua vez a forma é o pressuposto orgânico da existência e todo o ser vivo deve possuir uma forma para existir, e do mesmo modo a arte, incluindo a arte trágica, é uma narração da felicidade de existir.

Boris Pasternak, Doutor Jivago




Memorial às Vítimas do Comunismo, Praga
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O marxismo e a ciência? Bom... Discutir com alguém que mal conhecemos é, pelo menos, imprudente... Tanto pior! O marxismo domina-se a si próprio muito mal para que lhe possamos chamar uma ciência. Geralmente, as ciências são mais equilibradas. O marxismo e a objectividade? Não conheço nenhuma teoria mais fechada em si mesma e mais afastada dos factos que o marxismo. Normalmente procuramos verificar as nossas ideias recorrendo à experiência. Mas os homens que estão no poder, esses, imaginam tudo o que lhes é possível para virarem as costas à verdade em nome dessa fábula que forjaram a respeito da sua infalibilidade. A política não me diz nada. Não gosto de quem é indiferente à verdade.
Samdeviatov tomou as palavras do médico como brincadeiras de um original. Limitou-se a sorrir e não fez qualquer comentário.
Boris Pasternak, Doutor Jivago

quinta-feira, 8 de março de 2018




Vincent van Gogh, The Yellow House, 1888

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Há muito tempo já que eu penso que a arte não é uma categoria, um domínio que abranja uma infinidade de noções e de fenómenos com as suas diversas ramificações; penso, pelo contrário, que a arte é qualquer coisa de restrito, de concentrado, isto é, um princípio fundamental, um elemento da própria obra de arte, aquilo que encontra nela a sua aplicação, a porção de verdade que revela. Nunca entendi a arte como um objecto ou um aspecto da forma, mas sim como um elemento misterioso e oculto do conteúdo. Tudo isto é para mim claro como a água, a dificuldade está em exprimir-me, em formular com nitidez esta ideia. As obras falam-nos de muitas maneiras: graças aos temas, às situações, aos objectivos, aos heróis. Mas o que importa é a parcela de arte que na obra se esconde. A arte das páginas do Crime e Castigo emociona-nos mais do que o crime propriamente dito de Raskolnikov. A arte primitiva, a arte egípcia, a arte grega, a arte actual têm sido sempre através dos milénios uma só e única coisa, a arte (sempre no singular). O que a constitui é um pensamento, uma posição perante a vida, que é demasiado universal para que nos seja possível decompô-la em palavras isoladas; e quando um átomo dessa força se insere em algo de complexo, essa parcela de arte torna-se o centro em torno do qual tudo o mais gira, torna-se a essência, a alma e o fundamento desse conjunto.
Boris Pasternak, Doutor Jivago

sábado, 27 de janeiro de 2018




John Singer Sargent, Sunset, 1905-06

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«Cá estou eu, no meio do horror», pensou, tentando exagerar a situação, na esperança de se convencer de que o pior do que acontecera estava ali. Mas não resultou. A chegada brusca do vento era um novo presságio: associava-o ao que ia acontecer. O som era agora singular, vinha por baixo da porta, era como o de um animal. Se ao menos pudesse desistir, descontrair-se, e viver no perfeito conhecimento de que não havia esperança. Mas não existia esse conhecimento, nenhum, nenhuma certeza; o tempo que vinha trazia sempre consigo mais do que uma direção possível. Não se pode desistir da esperança. O vento sopraria, a poeira estaria ali e de alguma maneira, ainda que imprevisível, o tempo traria uma mudança que podia ser aterradora, uma vez que não seria a continuação do presente. 
Paul Bowles, O Céu que nos Protege

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018



John Singer Sargent, Bedouin Camp, 1906

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Ouvia Bilger a ressonar em surdina; lá fora um mastro ou uma adriça estalava ao vento, podíamos imaginar estar num veleiro ancorado — acabei por adormecer. Foi uma lua redonda, baixa, que me despertou pouco antes do amanhecer quando alguém abriu a tenda à imensidão levemente azulada; a sombra de uma mulher levantava o tecido que servia de porta e o perfume do deserto (terra seca, cinza, animais) rodopiava à minha volta, no cacarejar ainda discreto das galinhas que debicavam, monstros horríveis e furtivos na penumbra, as migalhas do pão do nosso jantar ou os insetos noturnos que o nosso calor havia atraído — depois a aurora passou os seus dedos rosa através da bruma, busculando a lua, e tudo pareceu animar-se num concerto: o galo cantou, o velho xeique enxotou os galináceos demasiado temerários sacudindo o cobertor, o vendedor ambulante levantou-se, pôs pelos ombros a manta em que se enrolara durante a noite e saiu — apenas Bilger continuava a dormir; espreitei o relógio, eram 5 horas da manhã. Foi a minha vez de me levantar; as mulheres atarefavam-se em frente à tenda, fizeram-me um pequeno cumprimento com a mão. O vendedor ambulante fazia as suas abluções com parcimónia com um cântaro de plástico azul: imaginei que fosse um dos objetos que vendia. A parte as ligeiras incandescências do céu a leste, a noite mantinha-se profunda e gelada; o cão ainda dormia, enrolado como uma bola contra a parede exterior da tenda. Perguntava-me se iria ver Sarah sair, ou se ela dormiria ainda como o cão, como Bilger. Deixei-me ficar a olhar o céu abrir-se, com a oratória de Félicien David na cabeça, o primeiro a transformar em música a assustadora simplicidade do deserto.
Mathias Énard, Bússola

domingo, 21 de janeiro de 2018



Vincent van Gogh, Portrait of Dr. Gachet, 1890

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Pronto, fiquei sem sono. O sono nunca quer muito comigo, primeiro atormenta-me para logo me abandonar muito depressa, por volta da meia-noite. O sono é um monstro de egoísmo que só faz o que lhe apetece. O Dr. Kraus é um médico medíocre, devia mudar. Despedi-lo. Devia oferecer-me o luxo de despedir o meu próprio médico, pô-lo a andar, um médico que nos fala de repouso em todas as consultas, mas que é incapaz de nos fazer dormir não merece o nome de médico. É preciso reconhecer, em sua defesa, que nunca engoli as porcarias que ele me prescreve. Mas um médico que não adivinha que não vamos tomar as porcarias que ele prescreve não é um bom médico, outra razão para mudar. Apesar disso, Kraus tem ar de ser um homem inteligente, sei que gosta de música, não, exagero, sei que vai a concertos, o que não prova nada. Ainda ontem me disse: «Fui ouvir Liszt ao Musikverein», respondi-lhe que tinha tido sorte, há muito que Liszt não tocava em Viena. Riu-se, claro, e depois disse: «Ah, o doutor Ritter faz-me morrer a rir», o que é, convenhamos, uma frase estranha vinda de um médico. Continuo a não lhe perdoar ter-se rido quando lhe pedi para me prescrever ópio. «Ah ah ah, posso passar-lhe uma receita, mas em seguida vai ter que encontrar uma farmácia do século XIX.» Eu sei que ele mente, verifiquei no Jornal Oficial, um médico austríaco tem direito a prescrever até 2 g de ópio por dia e 20 g de láudano, e se é assim deve conseguir encontrar-se. O que é ridículo, é que se for um veterinário da mesma nacionalidade pode prescrever até 15 g de ópio e 150 g de tintura de ópio, dá-nos vontade de ser um cão enfermo. Posso talvez suplicar ao bicho do Gruber para que me venda uma parte dos seus medicamentos às escondidas do dono, ora aí está o que daria finalmente algum préstimo ao cachorro. 
Mathias Énard, Bússola

sábado, 20 de janeiro de 2018



Vanessa Bell, Conversation, 1916

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A verdade é que a Sra. Crowe não queria intimidades; queria conversar. A intimidade gera o silêncio, e o silêncio era coisa que ela detestava. Tinha que haver conversa, e esta tinha que ser sobre assuntos gerais, sobre tudo um pouco. Não podia ser demasiado profunda, nem demasiado inteligente; pois se a conversa avançava demasiado em qualquer destas direcções, era certo e seguro que alguém haveria de se sentir excluído e ficar ali a girar a sua chávena de chá, sem abrir a boca. Assim, a sala de estar da Sra. Crowe pouco tinha em comum com os celebrados salões dos escritores de memórias. Era muitas vezes frequentada por pessoas médicos, juízes, deputados, músicos, escritores, viajantes, jogadores de pólo, actores e perfeitas nulidades — mas se alguém dizia algo de brilhante, isso era considerado uma espécie de falha de etiqueta, uma contingência prontamente ignorada, como se se tratasse de um ataque de espirros ou uma qualquer catástrofe com um pedaço de bolo. O tipo de conversa que a Sra. Crowe apreciava era uma versão nobilitada da bisbilhotice de aldeia. A aldeia em questão era Londres, e a bisbilhotice incidia sobre a vida de Londres. Mas o grande dom da Sra. Crowe consistia em fazer com que a vasta metrópole parecesse reduzir-se à dimensão de uma aldeia com igreja, solar e umas vinte e cinco casas. Ela tinha informações de primeira mão a respeito de cada peça de teatro, cada filme, cada julgamento, cada caso de divórcio. Sabia quem estava para casar, quem estava para morrer, quem estava na cidade ou se havia ausentado. Mencionava o facto de ter visto passar o carro de Lady Umphleby, e arriscava o palpite de que esta iria visitar a sua filha, cujo bebé tinha nascido na noite anterior; e nisso era como uma aldeã a comentar que viu a esposa do Senhor conduzir até à estação para receber o Sr. John, recém-chegado da cidade. E tendo feito tais observações ao longo dos últimos cinquenta anos, a Sra. Crowe adquirira um impressionante acervo de informações a respeito da vida das outras pessoas.
Virginia Woolf, Londres, Retrato de uma Londrina

sexta-feira, 19 de janeiro de 2018





Vincent van Gogh, Pine Trees against a Red Sky with Setting Sun, 1889
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Não há muito tempo, foi pedido a cientistas de várias disciplinas que descrevessem a ideia que eles desejariam ver mais compreendida, em sentido global. Esqueci todos os outros, tal o impacto reorganizador do enunciado de Martin Rees, astrónomo da Coroa e professor de Cosmologia e Astrofísica em Cambridge:
"Gostaria de alargar a consciência das pessoas quanto ao tremendo período de tempo que temos pela frente -- para o nosso planeta e para a própria vida. A maior parte das pessoas instruídas tem consciência de que somos o resultado de quase quatro biliões de anos da selecção de Darwin, mas muitos têm tendência a pensar que somos de algum modo o culminar da evolução. O nosso Sol, porém, ainda não chegou a metade do seu período de vida. Não serão os humanos que verão a morte do Sol, daqui a seis biliões de anos. As criaturas que existirão nessa altura serão tão diferentes de nós como nós somos das bactérias ou das amibas."

Julian Barnes, Nada a Temer



Caspar van Wittel,  L'Isola di San Michele..., séc. XVIII
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Quando chegou a vez de Stravinsky, trinta e quatro anos mais tarde, o corpo foi levado de avião de Nova Iorque para Roma, e depois de Carro para Veneza, onde havia cartazes pretos e roxos afixados em todo o lado: A CIDADE DE VENEZA PRESTA HOMENAGEM AOS RESTOS MORTAIS DO GRANDE MÚSICO IGOR STRAVINSKY, QUE, NUM GESTO DE PRECIOSA AMIZADE, PEDIU PARA SER ENTERRADO NA CIDADE QUE AMOU ACIMA DE TODAS AS OUTRAS. O arquimandrita de Veneza dirigiu a cerimónia grega ortodoxa na Basílica de São João e São Paulo, depois o caixão foi transportado até à estátua de Colleoni e seguiu para um barco fúnebre movido a remos por quatro gondoleiros, rumo ao cemitério da ilha de San Michele. Aí, o arquimandrita e a viúva de Stravinsky deitaram terra sobre o caixão, quando ele baixou à sepultura. Francis Steegmuller, o grande estudioso de Flaubert, seguiu os eventos do dia. Disse que, quando o cortejo saiu da basílica para o canal, com os Venezianos debruçados em todas as janelas, a cena se assemelhou a «um dos cortejos sumptuosos de Carpaccio». Mais, muito mais do que protocolo. 

Julian Barnes, Nada a Temer

domingo, 16 de abril de 2017



Miniatura francesa do século XV. Clérigos estudando astronomia e geometria, The British Library

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Oh, o Homem e o animal são próximos parentes! Mas se nós falamos da origem, o Homem nasceu do animal, pouco mais ou menos, como o orgânico do inorgânico. Alguma coisa se acrescentou a isso.
- Acrescentou? E o quê?, se me é permitido perguntar.
- Pouco mais ou menos o que foi acrescentado quando o ser emergiu do nada. Ouviu alguma vez falar da geração espontânea?
Anseio por ouvir falar.
(...)
Não houve uma geração espontânea, mas três: o Ser saindo do Nada, a Vida proveniente do Ser e o nascimento do Homem.
(...)
 Curvado para a frente, ouvia o meu curioso companheiro de viagem falar-me do Ser, da Vida, do Homem e do Nada, onde tudo tinha sido engendrado e onde tudo regressaria. Ele dizia que, sem nenhuma dúvida, a vida terrestre não era senão um episódio relativamente efémero, tal como o ser era outro entre dois nadas. O ser não tinha existido sempre e não existiria sempre. Houvera um começo e haveria um fim, mas com ele abolir-se-iam o espaço e o tempo, que existiam unicamente em função dele e só por ele estavam ligados. Kuckuck disse que o espaço não era senão a ordem ou as relações das coisas materiais entre elas. Sem objetos para o ocupar não haveria nem espaço nem tempo porque o tempo não era outra coisa senão uma hierarquia de incidentes (facilitada pela presença dos corpos), o produto do movimento de causa e efeito, cujo decorrer dava ao tempo uma direcção sem a qual ele não existiria. Ora a abolição do espaço e do tempo era precisamente a definição do nada. Este, sem dimensões em todas as acepções da palavra, uma eternidade estática, tinha sido passageiramente interrompido pelo ser espacial e temporal. A este ser fora concedida uma dilação, alguns iões a mais do que à vida, mas um dia ele acabaria, seguramente, e também seguramente a esse fim corresponderia um começo. Quando é que o tempo, o devir, tinham começado? Quando o primeiro sobressalto do ser tinha jorrado do nada pela vontade dum "Que isso seja!", que já implicava como uma irrefutável necessidade um: "Que isso desapareça!" Talvez o «quando» do devir não fosse tão recuado no passado, nem o «quando» do aniquilamento tão afastado no futuro. Talvez não se tratasse senão de alguns biliões de anos. Contudo, o ser celebrava a sua festa tumultuosa nos espaços incomensuráveis que eram a sua obra e onde ele formava as distâncias fixadas num vácuo gelado.
E Kuckuck falou-me do gigantesco teatro desta festa, o universo filho perecível do eterno nada, cheio de corpos materiais sem número: meteoros, luas, cometas, nebulosas, milhões e milhões de estrelas em interacção e ordenados uns em relação aos outros segundo a actividade dos seus campos de gravitação, em massas, nuvens, galáxias e supersistemas de galáxias, cada uma formada de inumeráveis sóis em ignição, de planetas girando sobre si mesmo, de gases rarificados, de campos de escombros frios feitos de escórias, de pedra e de poeira cósmica.
(...)
Disse-me também que a nossa Via Láctea, uma entre biliões de outras, englobava o nosso sistema solar local, quase na sua franja, um pouco como uma florinha nascida no buraco dum muro, a trinta anos-luz do seu centro, com a sua esfera de fogo gigantesca relativamente insignificante chamada o Sol (embora ele só merecesse o artigo indefinido) e os planetas dominados pelo seu campo de atracção, entre os quais a Terra. Esta tinha o prazer e o trabalho de girar sobre o seu eixo à velocidade de mil seiscentos e setenta quilómetros por hora e de fazer, à cadência de trinta quilómetros por segundo, a volta do Sol. Assim formava ela os seus dias e os seus anos - os seus próprios, bem entendido, porque havia outros. O planeta Mercúrio, por exemplo, o mais próximo do Sol, executava a sua evolução em trinta e oito dos nossos dias, tempo em que girava uma única vez sobre si mesmo, de forma que para ele o ano e o dia eram apenas um. Podia-se ver por aqui que acontecia com o tempo o que acontecia com a gravidade, que também não era universalmente válido. Por exemplo, no branco satélite de Sírius, que era apenas três vezes maior do que a Terra, a matéria tinha uma tal densidade que um centímetro cúbico pesaria entre nós cerca de sessenta quilogramas. A substância, os nossos maciços rochosos, o nosso corpo humano, não eram, em comparação com ele, senão uma ligeira espuma sem consistência.
Enquanto a Terra — tive a boa fortuna de o aprender- se apressava, girando em volta do Sol, a sua Lua girava em volta dela. Todo o nosso sistema solar se movia no quadro dum sistema estelar mais vasto embora ainda muito local e que, aliás, por seu turno, não ficava inactivo — porque esse sistema de interacção se movia a uma velocidade enorme no interior da nossa Via Láctea, a qual, em relação com as suas longínquas irmãs, devorava o espaço também com uma avidez inimaginável. E tudo isso, essas distantes combinações materiais do Ser, tão rápidas que a velocidade dum obus por comparação com ela não era senão imobilidade, dispersavam-se em todas as direcções no nada para onde elas levavam impetuosamente o espaço e o tempo. Essas rotações, esses turbilhões imbricados e circulares, essa contracção de nebulosas condensadas em corpos, essa ignição, esse flamejamento, esse arrefecimento, essa explosão, esse retorno à poeira, essa queda e essa perseguição sem fim, saídos do nada e suscitando o nada, tudo isso, que talvez fosse melhor ter ficado adormecido e esperava tornar a cair no sono — era o Ser, igualmente chamado Natureza, e era Um, por toda a parte e em tudo. Rogou-me que não duvidasse que todo o ser, e a Natureza, formavam uma unidade circunscrita em si, desde a simples matéria inanimada, até à mulher com braços dum belo contorno, até à forma de Hermes. O nosso cérebro humano, a nossa ossatura, eram os mosaicos das mesmas moléculas elementares de que se compunham as estrelas, a poeira cósmica e as sombrias nuvens movediças do espaço interestelar. A vida saída do Ser, como este jorrara do Nada — a vida, flor do Ser —tinha todas as suas substâncias fundamentais em comum com a natureza inanimada e não podia apresentar uma só que fosse só dela. Não se poderia dizer que ela se diferenciava sem equívoco do ser simples inanimado. Entre ela e o inanimado a fronteira continuava imprecisa. A célula vegetal apresentava a possibilidade natural de transformar as matérias pertencentes ao reino mineral com a ajuda do éter solar, de tal forma que estas tomavam vida nela. A faculdade de geração espontânea da clorofila mostrava-nos como o inorgânico pode dar origem ao orgânico. Os casos inversos não faltavam, aliás, como o testemunham os minerais formados pelos ácidos silícicos animais. Futuras montanhas da terra firme cresciam do mais profundo dos mares, provenientes dos despojos dos esqueletos de minúsculos seres animados. Na meia-vida ilusória dos cristais líquidos processava-se manifestamente a passagem dum reino natural a outro. E sempre que a Natureza, para nos mistificar, simulava o orgânico no inorgânico (como nas flores do enxofre ou nas flores do gelo) ela pretendia ensinar-nos a sua unicidade.
O orgânico, esse mesmo, não conhecia linha de demarcação muito nítida entre as suas diversas variedades. O animal transformava-se em vegetal quando se ligava uma haste e adoptava a forma simétrica duma flor — o vegetal transformava-se em animal quando atraía e devorava os bichos em vez de sugar a vida no mineral. O Homem tinha nascido do reino animal, talvez por derivação, como se dizia, mas em realidade, pela contribuição dum elemento novo ao qual era tão difícil dar um nome como à essência da vida ou à aparição original do ser. Mas o ponto em que ele se transformava em Homem e já não era animal (ou antes, já não era unicamente animal) era difícil de precisar. O Homem guardava a sua animalidade da mesma forma que a vida mantinha nela o inorgânico, porque nos seus últimos materiais de construção - os átomos- ela chegava ao «não-mais-orgânico" ou ao «ainda-não-orgânico». Contudo, lá bem no fundo, no átomo imperceptível, a matéria volatilizava-se no imaterial, no que já não era corporal. E isto porque o que se elaborava aí e de que o átomo formava a superestrutura era quase debaixo do ser e não ocupava um lugar determinado no espaço nem uma porção de espaço que se pudesse definir como honestamente convém a um corpo. O ser nascia do «apenas-já-existente», e mergulhava no «apenas-ainda-existente»...
Na Natureza todas as formas, desde as mais antigas e mais sumárias, quase ainda imateriais, até às mais evoluídas e vivas, estavam reunidos e coexistiam: a nebulosa, a pedra, o verme e o homem. Muitas das formas animais tinham desaparecido e já não havia répteis voadores nem mamutes. Isso não impedia que ao lado do homem continuasse a viver o animal primitivo, apenas provido duma forma: o unicelular, o micróbio, o infusório, com uma entrada e uma saída no seu corpo-célula. Não era preciso mais para ser um animal. E, para ser um homem, não era geralmente preciso muito mais. 
(...)
- O «progresso» existe, existe, sem dúvida nenhuma. Do Pithecantropus erectus a Newton e a Shakespeare, havia um longo caminho nitidamente ascendente. Mas pelo que se refere ao comportamento do resto da Natureza, esse era também do mundo dos humanos. Neste caso havia sempre a reunião de tudo, dos estados mais diversos da cultura e da ética. Desde o espécime mais primitivo até ao mais recente, do mais estúpido ao mais inteligente, do mais primário, obtuso e selvagem até à evolução mais alta e mais perfeita, tudo coexistia sempre neste mundo. Muitas vezes o superfino, cansado de si mesmo, enamorava-se do primitivo e, embriagado, recaía na selvajaria. E basta de falar a este respeito.
Mas era preciso dar ao Homem o que lhe era devido, e Kuckuck não me escondia ... o que distinguia o Homo Sapiens do resto da Natureza, da Natureza orgânica e do ser no estado simples. Esta distinção era constituída pelo elemento que se tinha provavelmente acrescentado quando este ser tinha saído da animalidade. Era a noção do começo e do fim.
Tinha pronunciado, eu próprio, a palavra mais humana ao dizer que o facto de aprender que a vida não era senão um episódio me dispunha em seu favor. Com efeito, o efémero, em vez de a desvalorizar, conferia precisamente a toda a existência sobre a Terra o valor e a dignidade que a tornavam digna de ser amada. Só o episódico, só o que tinha um começo e um fim era interessante e despertava a simpatia, justamente porque era efémero. Aliás, isto era assim para tudo. O efémero impregnava o ser cósmico, e só o nada era eterno e, portanto, indigno de simpatia. O nada donde a Vida e o Ser provinham para sua alegria e seu tormento.
Ser não significava bem-estar. Era uma alegria e um tormento e todo o ser integrado no espaço e no tempo, toda a matéria, participava, mesmo em estado de profunda letargia, nessa vida, nesse tormento, no sentimento que inclinava o Homem, detentor da sensibilidade mais acordada, para a simpatia universal. A "simpatia universal», repetiu Kuckuck, apoiando-se com as mãos no tampo da mesa para se levantar. Olhou-me com os seus olhos estrelados e fez-me sinal com o queixo.  
- Boa noite, (...) Durma bem. Sonhe com o Ser e com a Vida! Sonhe com o tumulto das galáxias que, porque existem, sofrem a sua existência na alegria e no tormento. Sonhe com o braço dum belo contorno, mas duma ossatura primitiva e com a flor dos campos que sabe, graças ao éter solar, extrair o inanimado e, transformando-o, incorporá-lo. E não se esqueça de sonhar com as pedras, com o rochedo que jaz na torrente há milhares de anos, lavado e refrescado pelo rebentamento da espuma e das águas. Considere com simpatia a sua existência como ser mais consciente perante o mais profundamente inconsciente e saúde-o na criação. Ele conhece o bem-estar, se o ser e o bem-estar se podem conciliar. Desejo-lhe uma boa noite! 
Thomas Mann, As Confissões de Félix Krull, Cavalheiro de Indústria


Henri Fantin-Latour, Marie Yolande de Fitz-James, 1867

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No fundo, que maravilhoso fenómeno que são os olhos do homem, essa jóia entre todas as formações orgânicas sobretudo quando concentra o seu brilho húmido sobre outra forma humana! Preciosa gelatina composta duma substância tão comum como a do resto da criação, ela prova, tal como as pedras preciosas, que as diversas matérias não têm importância em si e que tudo está no seu conjunto engenhoso e feliz. Mucilagem encaixada numa cavidade óssea, uma vez privada de alma, ela está destinada a apodrecer na tumba e a dissolver-se de novo em lama líquida. Mas enquanto subsistir nela a faísca da Vida, saberá lançar admiráveis pontes etéreas por cima de todos os abismos de incompreensão que se possam interpor entre dois seres humanos. Das coisas delicadas e fluídas, convém falar com delicadeza e fluidez; por isso formularei aqui, com precaução, uma observação acessória. Em resumo: a felicidade só se pode encontrar nos pólos extremos das relações humanas onde as palavras não existem ainda ou onde já não existem — no olhar e nos abraços. Só lá se situam o incondicional, a liberdade, o mistério e o entusiasmo irreprimível. Tudo o que existe no intervalo, como contacto e relações sociais, é tíbio e fraco, determinado, condicionado e limitado pelo formalismo e pela tradição burguesa. A palavra, aí torna-se senhora — a palavra, essa intermediária baça e fria primeiro produto duma civilização domesticada e moderada, e tão totalmente estranha à ardente e muda esfera da natureza que cada vocábulo é, de qualquer maneira, um frase por si e em si.
Thomas Mann, As Confissões de Félix Krull, Cavalheiro de Indústria



domingo, 19 de março de 2017




Abel Manta, Largo Camões, 1954
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Lembro-me sempre, a este e outros propósitos, da ocasião em que assisti a uma exibição pública do famoso documentário Portugal: Um Retrato Social (...). Os espectadores não tinham tido qualquer experiência directa de Portugal ou do período salazarista. As imagens, a preto-e-branco, passavam diante deles mostrando um país triste, oprimido, pobre. Às referências à miséria, ao subdesenvolvimento, à repressão, somavam-se, talvez para tornar a coisa mais expressiva, frivolidades sobre o comprimento obrigatório das saias das raparigas ou a licença necessária para se ter isqueiro. A pobreza e a ditadura não bastaram aos autores do documentário; foi ainda preciso sugerir que se vivia numa opressão e tristeza permanentes. Comecei a ficar seriamente irritado e saí da sala, não fosse ter de intervir no debate que se seguiu à projecção para dizer que aquilo era uma demagogia pegada e que a vida das pessoas nos anos de 1960 e início da década de 1970 não era nada a preto-e-branco. Por incrível que pareça, Portugal era a cores. Até eu, o meu irmão, as minhas irmãs, com o pai preso depois de uma tentativa de golpe anti-salazarista da qual saiu à beira da morte, a mãe também presa, uma vida material muito difícil, até eu tive dias e noites de praia, namorei, ouvi música pop, dancei naquilo que na altura se chamavam boîtes, usei o cabelo comprido e roupas extravagantes, fumei charros, tudo isso no Portugal salazarista ou caetanista. Até eu tive momentos de felicidade, e não foram poucos, embora fosse muito menos pobre que os pobres, esses que também tiveram momentos de felicidade. O que me irrita em histórias do passado como a daquele documentário e outros semelhantes é a redução da dureza da vida a uma história para assustar crianças, insultuosa para as pessoas que sofreram de facto essa dureza, mas também para as outras, tratadas como espectadores tontos de uma história da qual a visão a preto-e-branco retira toda a verdade.  
Paulo Varela Gomes, Preto-e-Branco, em Ouro e Cinzas

domingo, 12 de março de 2017



Amedeu Modigliani, Estudo para o Violoncelista, 1909
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Tocou a Sonata para violoncelo em mi menor, opus 38, de Brahms. A sua boa cara estava estranhamente voltada para o interior, o seu bigode grisalho, nos lábios estendido, já não era um bigode, mas uma sombra cinzenta; as rugas das suas faces já não estavam dispostas da mesma maneira, já não tinha cara, a sua cara estava quase invisível, era talvez uma cinzenta tarde de Outono, pouco antes de nevar, E quando uma lágrima lhe rolou ao longo do nariz, já não era também uma lágrima. Só sua mão ainda era uma mão. Dir-se-ia que a arcada lhe captara toda a vida, o arco subia e baixava sob o impulso das moles e trigueiras ondulações de um rio de sons que cada vez se alargava mais, e ia cercando com suas vagas aquele que tocava, a tal ponto que este parecia só e como que separado dos outros. Tocava. Era provável que não passasse de um simples dilettante, mas isso não podia deixar de lhe ser indiferente a ele, indiferente ao comandante e também, com certeza, a Kuhlenbeck, pois naquela altura, o mutismo ruidoso da época, o lampejo mudo e impenetrável desse alarido, interposto entre o homem e o próximo, muro que a voz do homem não podia atravessar nem de um lado nem do outro, de tal modo que o homem não podia evitar um arrepio — o mutismo medonho da época fora abolido, o próprio tempo fora abolido e ganhara a forma do espaço que os encerrava a todos no momento em que o violoncelo de Kessel ressoava, fazia ecoar o som, edificando o espaço, enchendo o espaço, enchendo-os a eles próprios.
Hermann Broch, Os Sonâmbulos

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016




Em Spoleto, Itália, 2006


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- Animais que conduzem?
- Exactamente: porque na cidade os homens têm uma outra definição, já não os definimos como antigamente. Já não são animais racionais, já não são animais políticos, como lhes chamava Aristóteles. Nas cidades, os homens são animais que conduzem. Eis a definição certa e contemporânea. Na cidade, o homem é um animal que por vezes sai do carro.
- Por vezes, sim.
- Sai do carro como quem tira o casaco de cima dos ombros.
- Só tira o casaco quando não tem frio.
- Só sai do carro quando chegou ao destino.
- Eis a cidade.
- Na Grécia Antiga, a palavra destino, diga-se, tinha uma conotação bem mais forte. Destino como algo que determinava o sentido da existência, por exemplo. Soava um pouco melhor.
- Pois sim. Mas numa cidade moderna, o destino é o sítio onde o homem sai de dentro do carro.
- Eis, pois, ao que estamos reduzidos.
- O grande destino do homem é um parque de estacionamento.
- Não seja cínico, Excelência.
- Ok. Não serei cínico.

Gonçalo M. Tavares, O Torcicologologista, Excelência

domingo, 24 de julho de 2016




Egon Schiele, Portrait of a Man with a Floppy Hat, 1910
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Esta época, esta vida que se desagrega, terão ainda uma realidade? A minha passividade aumenta de dia para dia, não que eu me gaste ao contacto de uma realidade mais forte do que eu, mas porque por toda a parte se me depara o irreal. Tenho a consciência absoluta de que apenas na acção devo procurar o sentido e a ética da minha vida, mas adivinho que este tempo já não tem tempo para consagrar à única actividade verdadeira, à actividade contemplativa do filósofo. Tento filosofar, mas onde a dignidade do conhecimento? Não se extinguiu ela há muito frente a frente à evidência da desagregação do seu objecto? Não se teria degradado em vãs palavras a própria filosofia? Este mundo sem essência, este mundo sem estabilidade, mundo que já não pode encontrar nem conservar o seu equilíbrio senão numa velocidade crescente, fez do seu movimento arrebatado uma pseudo-actividade para o homem, a fim de projectar este no nada; — oh! existirá por- ventura mais profunda resignação do que a de uma época que já não é capaz de filosofar? A própria meditação filosófica transformou-se num jogo estético, um jogo que deixou de existir, introduziu-se na rotação estéril das engrenagens do mal, é uma ocupação para burgueses que entretém o tédio das suas noites: só nos resta o número, só nos resta a lei! 
Hermann Broch, Os Sonâmbulos

sábado, 25 de junho de 2016

As Nuvens VI



Na manhã de dia 25 de Junho de 2016
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Vincent van Gogh, Wheatfield with Crows, 1890
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"...adormeci tontamente num banco do jardim, e a tonteria não foi ter adormecido, foi o lugar escolhido para tal sendo prova disso o facto de ter acordado quando uma caca de corvo me acertou em cheio na ponta do nariz, limpei-me e verifiquei cabelo, equipamento, roupa, mas não, fora apenas um ataque, certeiro e apesar de tudo bondoso, se fosse no cabelo dava muito mais trabalho a tirar. Eu não percebo nada de animais mas simpatizo com os corvos, acho até que devem ser os bichos mais espertos que existem, para já basta observá-los para se perceber que falam uns com os outros, falam mesmo, talvez com poucas palavras, assim como os polícias ingleses, poucas palavras mas significativas, e além disso protegem-se uns aos outros, é vê-los cair do céu às centenas se uma cria está abandonada ou um deles foi ferido e se arrasta no chão. Em Bombay, eu e o Peter passámos uma manhã inteira, da janela do quarto onde estávamos, a tentar acertar com molas de roupa nos corvos que esvoaçavam no pátio porque a dona do hotel despejara lá uns restos de comida. Mas qual quê? De cada vez que levantávamos o braço, ou até olhávamos para eles com ar de quem faz pontaria, desatavam a voar. Uma ocasião ficámos imóveis, de braço no ar armado de mola, ficámos, e ficámos, e ficámos, e eles nada. Mal nos cansámos e baixámos os braços, um corvo desceu, zás!, e levou um pedaço de comida. Eu fiquei com tanta raiva que cheguei a atirar um punhado de molas, atingi um de raspão e ele mandou uma risada de corvo, como quem diz até que enfim, ó palerma!" 
Paulo Varela Gomes, Era uma  vez em Goa

domingo, 20 de março de 2016



Auguste Renoir, A Dos de Chameau, 1881
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Os camelos... Um dia, estudaria a fundo esses viajantes daquela paisagem, animais tão imutáveis como monumentos, genuínos através dos séculos, todos eles antigos, fosse qual fosse a sua idade. Passava muito tempo—involuntariamente, era certo—a estudar a sua forma curiosa. Enquanto esperava que o desconjuntado autocarro o conduzisse do palácio, após uma visita, aos montes onde agora vivia, observava os camelos que passavam em longos e lentos cortejos ou descansavam, enquanto os seus condutores se refaziam com gasosa engarrafada e arroz de caril. A estrutura do camelo era única: um esqueleto do formato do casco de um barco, mas apoiado em quatro pernas angulosas, que terminavam em enormes patas almofadadas, com machinhos que eram autênticos dispositivos à prova de choque, igualmente úteis na areia macia do deserto e nos carreiros pedregosos dos montes. A curva baixa do pescoço equilibrava o dorso alto e corcovado e terminava pela cabeça pequena e melancólica, de boca frouxa, beiço inferior móbil e pendente e olhos tristes, de pálpebras pesadas. Uma estranha alma espreitava através desses olhos um mundo que o camelo não se dava ao trabalho de compreender e que só podia aceitar até certo ponto. Se se sentia demasiado sobrecarregado, ou se o condutor feria, por meio de qualquer indiferença, as suas susceptibilidades, era capaz de se deitar suavemente no chão e de permanecer assim, imóvel, num protesto eloquente, até morrer. No entanto, os camelos não eram todos só alma e suavidade. Possesso de uma cólera súbita, um camelo não hesitava em lançar o seu hálito fétido ao rosto de quem o magoara, até este desmaiar, com o fedor insuportável. Embora estivesse convencido de que sabia tudo acerca de camelos, ainda na véspera o padre Francis Paul compreendera quanto se enganava, ao assistir ao estranho comportamento de um desses animais. No interior do enorme arcaboiço do camelo em questão soara um rugido semelhante ao eco distante da trovoada, nas montanhas, um eco que, através não se sabia de que canais, chegara à garganta e depois à boca do bicho, da qual irrompera um balão de membrana vermelha, com sessenta centímetros de diâmetro. O sacerdote ficara estupefacto.
Que é aquilo?— perguntara ao condutor bil, acocorado na poeira, numa semi-sonolência, depois de ter comido e bebido.
O homem bocejara e coçara a cabeça, antes de responder:
Quem sabe? É a sua maneira de se divertir.
Assim parecia, de facto. O sacerdote observara enquanto o camelo, terminado o estentóreo arroto, recolhia a membrana. Aquela terra antiga, aquela Índia, era muito rica em surpresas, grandes e pequenas. Não passava um único dia sem novos espectáculos, novos sons e novos cheiros.

Pearl S. Buck, Mandala

domingo, 6 de março de 2016




Amadeo de Souza-Cardoso,  Pintura (Janelas), 1916
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Todos nós entendemos que a arte deve ser livre. Mas raro nos damos conta de que esse ser livre tem de ser em nome do que nos seja indiscutível, ou seja, daquilo em face do qual não se é livre. Toda a liberdade só tem sentido contra alguma coisa que se nos opõe. Mas o que nem sempre se pensa é que só tem sentido ser-se contra, se o formos em nome de. Ser livre em relação a tudo equivale a sê-lo em relação a nada, porque nada isso pode justificar. Ser livre em relação a tudo é ter uma liberdade inútil, porque inteiramente disponível. Ser livre em relação a tudo é igual a ser determinado, porque num caso e noutro não há escolha nenhuma, A liberdade é então uma função sem destino e vira-se para si própria como um estômago vazio. Assim ela se destrói no seu significado pela autofagia. O nosso tempo conhece esse destino e o acto de desespero é a forma de o anular. O terrorista, na realidade, inventa um motivo para restaurar a liberdade na sua função própria, como os finalistas buscavam uma finalidade para tudo o que existe. Aí se insere, como sabemos, o impasse da arte. Porque ela não serve para nada, mas teve sempre alguma coisa em função da qual existisse para não servir. E não apenas o que fosse uma função representativa. Não é curioso que isso aconteça com a própria música? Porque ela é, de sua natureza, uma arte «formal». Mas a sua ausência de um «motivo» não o é de um fundamento, de uma razão de ser formal em que nos reconheçamos. Não deriva isso de um «hábito» a que nos não acomodámos ainda, mas da destruição de um valor que lhe subjaz enquanto música, que invisível a orienta e fica em nós como o espírito que a anima. Como em toda a obra de arte. Porque em toda ela o que em nós fica não é bem o que lá está, mas a alma que a fez ser e fica a ressoar em nós, mesmo quando já lhe esquecemos o motivo. Todo o destino humano se insere entre o «porquê» e o «para quê». Mas esses limites são os de uma liberdade que deseja cumprir-se. Um rio define-se nos limites que lhe demarcam um percurso e sem eles seria uma desordem espraiada. Nós exigimos a liberdade mas igualmente a sua razão de ser. Que é que justifica uma luz que nada ilumina e se perde no vazio? Eis porque é um erro curioso esse de supor-se que uma arte religiosa não é uma arte livre. Ora ela só o não é, se estiver a vigiá-la não uma crença mas um inquisidor. É-se livre contra alguma coisa, mas em nome de outra. Fora disso é-se uma estupidificação da Natureza que é de si já bastante estúpida. Resta apenas o que nos resta e é a evidência de que a vida humana é uma razão bastante na sua ausência de razão, para toda a falência de razões. É pouco? É o que temos. Só nos não habituámos a que ela estivesse acima de tudo quanto foi acima. A aceitação da gratuidade. O milagre inútil. Mas assim mesmo um milagre. Não há pergunta sobre o para quê de uma flor que lhe tire o encantamento. O sentido do ser é o ser. E se nos calássemos?
Vergílio Ferreira, Pensar

domingo, 7 de fevereiro de 2016



Garden Gathering (painel de azulejo), 1640–50
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Começou então a parte mais bela de toda a viagem, que nos fez lamentar não virmos a cavalo. A estrada afastou-se do rio e iniciou um ataque directo à parte central do Hindu Kush, escalando os bastiões verdes não em curvas, mas numa sucessão de seladas com declive acentuado, que seguia de cumeada em cumeada. De todos os lados, acima e abaixo, e até onde o olhar alcançava, as escarpas de erva ondulante eram salpicadas por uma imensa variedade de flores, amarelas, brancas, roxas e rosa, que cresciam em disposição tão artística, nem muito próxima nem muito afastada, nem em excessiva profusão de dada espécie, a ponto de parecer que um qualquer jardineiro principesco, um Bacon oriental, se atarefara em toda a extensão da cordilheira montanhosa. Chicórias com as suas flores azuis, malvas-rosa de caules altos, maciços de centáureas amarelo-limão sobre protuberâncias castanhas atarracadas, manchas de pequenas espigas brancas semelhantes ao jasmim, uma grande saxífraga de folhas sarapintadas, uma florinha amarelo-manteiga com centro castanho semelhante à almiscareira de jardim, molhos de urtigas azuis e cor-de-rosa sem picos nas folhas e raminhos de helicónia rosada, eram apenas algumas das flores que tremeluziam no meio daquele imenso relvado como que coberto de esmalte, emoldurado pelas nuvens lá no alto e as perpétuas ondulações do Turquestão cá em baixo, e espreitavam também por baixo de arbustos de pistácia, enquanto avançávamos aos soluços por entre fumarada, amaldiçoando o nosso camião vandalizador, até ao cimo do desfiladeiro de Kampirak.
Robert Byron, A Estrada para Oxiana


Reza AbbasiStudy of a Bird, 1634
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O sol cadente lança garridos raios acobreados por sobre o céu coberto de areia, e todos os pássaros da Pérsia se juntam para cantar uma última vez em coro. Lentamente, com a escuridão, chega o silêncio, e os pássaros preparam-se para dormir com adejes cada vez mais lentos, como uma criança que se cobre com a roupa da cama. E então eleva-se outra nota, um bemol quente e metálico que, tímido a princípio, ganha coragem, vibrando sem parar, e depois, como se os segundos violinos entrassem em cena de mansinho, passa a ser duas notas, ora uma, ora outra, à qual responde uma terceira do outro lado do espelho de água. Mahun é famosa pelos seus rouxinóis. Mas eu prefiro celebrar as rãs. Entretanto, saí para o pátio, para a escuridão abrigada das árvores. De repente, o céu limpou, e a Lua reflectiu-se por três vezes, uma vez na cúpula e duas nos minaretes. Nesse preciso momento, surge na varanda sobre a entrada um círculo de luz ambarina, e um peregrino começa a entoar o seu cântico. Segue-se-lhe o som da água a correr em fio para os canteiros plantados de fresco. Estou finalmente na cama. O quarto tem dez portas e onze janelas, através das quais assobia e se precipita um furacão de vento e de gatos em busca de ossos de galinha. E as rãs continuam a chamar umas pelas outras: aquela nota vibrante e iridescente consegue abrir caminho pelo meu sono adentro. Acordo com um gato a tentar abrir a minha lancheira com tal fúria que se eu fosse arrombador de cofres gostava de o ter como ajudante. A corrente de ar abana-me a cama. Espero que Ali Asgar esteja mais quente no alojamento dos derviches, mas de manhã não me atrevo a reclamar com ele porque há quinze anos o general Sykes disse-lhe que Mahun era um paraíso. A manhã está iminente, deixa cair os seus véus cinzentos, chega - e como se acordados pela batuta de um maestro autoritário, os pássaros encetam novo canto, um hino ensurdecedor e estridente ao Sol, enquanto do outro lado do quarto um bando de corvos se lança, para não ser esquecido, num concurso de grasnadelas. E, subitamente como antes, o silêncio volta, quando os primeiros raios de sol sobem furtivamente ao palco. Lá fora, em frente à porta, Ali Asgar e o derviche atiçam um tabuleiro de carvão com um abanador e reanimam o samovar com todos os cuidados. Ouvem-se passos: - Ya Allah! - O derviche responde: - Ya Allah! O peregrino entoa as suas orações matinais da varanda, com prolongados semitons nasais que me fazem pensar no Monte Atos. Um arco de ouro ilumina a cúpula azul e o céu cobre-se de um algodão rosado. Aqui vem Ali Asgar com o tabuleiro do chá.
Robert Byron, A Estrada para Oxiana 

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016





Marc Chagall, Noé et l'Arc-en-Ciel, 1963
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Comment voir sans douleur les saintes idées qu’on a eu tant de peine à faire vaincre, pour lesquelles les meilleurs, depuis un siècle, ont souffert mille tourments, foulées aux pieds par ceux qui viennent ! Tout ce magnifique héritage de l’idéalisme français, – cette foi dans la Liberté, qui eut ses saints, ses héros, ses martyrs, cet amour de l’humanité, cette aspiration religieuse à la fraternité des nations et des races, – avec quelle aveugle brutalité ces jeunes gens le saccagent ! Quel délire les a pris de regretter les monstres que nous avons vaincus, de se remettre sous le joug que nous avions brisé, de rappeler à grands cris le règne de la Force, et de rallumer la haine, la démence de la guerre dans le coeur de ma France.

Ce n’est pas seulement en France, c’est dans le monde entier, disait Christophe, d’un air riant. De l’Espagne à la Chine, la même bourrasque souffle. Plus un coin où l’on puisse s’abriter contre le vent! Vois, cela devient comique: jusqu’à ma Suisse, qui se fait nationaliste!

Tu trouves cela consolant?

Assurément. On voit là que de tels courants ne sont pas dus aux ridicules passions de quelques hommes, mais à un Dieu caché qui mène l’univers. Et devant ce Dieu, j’ai appris à m’incliner. Si je ne comprends pas, c’est ma faute, non la sienne. Essaie de le comprendre. Mais qui de vous s’en inquiète ? Vous vivez au jour le jour, vous ne voyez pas plus loin que la borne prochaine, et vous vous imaginez qu’elle marque le terme du chemin ; vous voyez la vague qui vous emporte, et vous ne voyez pas la mer ! La vague d’aujourd’hui, c’est la vague d’hier, la nôtre, qui lui a imprimé son élan. La vague d’aujourd’hui creusera le sillon de la vague de demain, qui la fera oublier, comme on oublie la nôtre. Je n’admire ni ne crains le nationalisme de l’heure présente. Avec l’heure, il s’écoule, il passe, il est passé. Il est un degré de l’échelle. Monte au faîte ! Il est le sergent fourrier de l’armée qui va venir. Écoute déjà sonner ses tambours et ses fifres!…

(Christophe battait du tambour sur la table, où le chat, réveillé, sursauta).

Chaque peuple, aujourd’hui, sent l’impérieux besoin de rassembler ses forces et d’en dresser le bilan. C’est que, depuis un siècle, les peuples se sont transformés par leur pénétration mutuelle et par l’immense apport de toutes les intelligences de l’univers, bâtissant la morale, la science, la foi nouvelles. Il faut que chacun fasse son examen de conscience et sache exactement ce qu’il est et quel est son bien, avant d’entrer, avec les autres, dans le nouveau siècle. Un nouvel âge vient. L’humanité va signer un nouveau bail avec la vie. Sur de nouvelles lois, la société va revivre. C’est dimanche, demain. Chacun fait ses comptes de la semaine, chacun lave son logis et veut sa maison nette, avant de s’unir aux autres, devant le Dieu commun, et de conclure avec lui le nouveau pacte d’alliance. Emmanuel regardait Christophe ; et ses yeux reflétaient la vision qui passait. Il se tut, quelque temps après que l’autre eut parlé; puis, il dit:

Tu es heureux, Christophe ! Tu ne vois pas la nuit.

Je vois dans la nuit, dit Christophe. J’y ai assez vécu. Je suis un vieux hibou.
Romain Rolland, Jean-Christophe

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016




Marc Chagall, Marching, 1915
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Le chantre des énergies françaises n’avait jamais renié l’idéalisme de son maître, Olivier. Si passionné que fût son sentiment national, il se confondait avec son culte de la grandeur morale. S’il annonçait dans ses vers, d’une voix éclatante, le triomphe de la France, c’était qu’il adorait en elle, par un acte de foi, la pensée la plus haute de l’Europe actuelle, l’Athéna Niké, le Droit victorieux qui prend sa revanche de la Force. – Et voici que la Force s’était réveillée, au coeur même du Droit ; et elle ressurgissait, dans sa fauve nudité. La génération nouvelle, robuste et aguerrie, aspirait au combat et avait, avant la victoire, une mentalité de vainqueur. Elle était orgueilleuse de ses muscles, de sa poitrine élargie, de ses sens vigoureux et affamés de jouir, de ses ailes d’oiseau de proie qui plane sur les plaines ; il lui tardait de s’abattre et d’essayer ses serres. Les prouesses de la race, les vols fous par-dessus les Alpes et les mers, les chevauchées épiques à travers les sables africains, les nouvelles croisades, pas beaucoup moins mystiques, pas beaucoup plus intéressées que celles de Philippe Auguste et de Villehardouin, achevaient de tourner la tête à la nation. Ces enfants qui n’avaient jamais vu la guerre que dans des livres n’avaient point de peine à lui prêter des beautés. Ils se faisaient agressifs. Las de paix et d’idées, ils célébraient « l’enclume des batailles », sur laquelle l’action aux poings sanglants reforgerait, un jour, la puissance française. Par réaction contre l’abus écoeurant des idéologies, ils érigeaient le mépris de l’idéal en profession de foi. Ils mettaient de la forfanterie à exalter le bon sens borné, le réalisme violent, l’égoïsme national, sans pudeur, qui foule aux pieds la justice des autres et les autres nationalités, quand c’est utile à la grandeur de la patrie. Ils étaient xénophobes, anti-démocrates, et –même les plus incroyants – prônaient le retour au catholicisme, par besoin pratique de «canaliser l’absolu», d’enfermer l’infini sous la garde d’une puissance d’ordre et d’autorité. Ils ne se contentaient pas de dédaigner – ils traitaient en malfaiteurs publics les doux radoteurs de la veille, les songe-creux idéalistes, les penseurs humanitaires. Emmanuel était du nombre, aux yeux de ces jeunes gens. Il en souffrait cruellement, et il s’en indignait.
Romain Rolland, Jean-Christophe