segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Ouvia Bilger a ressonar em surdina; lá fora um mastro ou uma adriça estalava ao vento, podíamos imaginar estar num veleiro ancorado — acabei por adormecer. Foi uma lua redonda, baixa, que me despertou pouco antes do amanhecer quando alguém abriu a tenda à imensidão levemente azulada; a sombra de uma mulher levantava o tecido que servia de porta e o perfume do deserto (terra seca, cinza, animais) rodopiava à minha volta, no cacarejar ainda discreto das galinhas que debicavam, monstros horríveis e furtivos na penumbra, as migalhas do pão do nosso jantar ou os insetos noturnos que o nosso calor havia atraído — depois a aurora passou os seus dedos rosa através da bruma, busculando a lua, e tudo pareceu animar-se num concerto: o galo cantou, o velho xeique enxotou os galináceos demasiado temerários sacudindo o cobertor, o vendedor ambulante levantou-se, pôs pelos ombros a manta em que se enrolara durante a noite e saiu — apenas Bilger continuava a dormir; espreitei o relógio, eram 5 horas da manhã. Foi a minha vez de me levantar; as mulheres atarefavam-se em frente à tenda, fizeram-me um pequeno cumprimento com a mão. O vendedor ambulante fazia as suas abluções com parcimónia com um cântaro de plástico azul: imaginei que fosse um dos objetos que vendia. A parte as ligeiras incandescências do céu a leste, a noite mantinha-se profunda e gelada; o cão ainda dormia, enrolado como uma bola contra a parede exterior da tenda. Perguntava-me se iria ver Sarah sair, ou se ela dormiria ainda como o cão, como Bilger. Deixei-me ficar a olhar o céu abrir-se, com a oratória de Félicien David na cabeça, o primeiro a transformar em música a assustadora simplicidade do deserto.
Mathias Énard, Bússola

Sem comentários:

Enviar um comentário