domingo, 6 de março de 2016

Todos nós entendemos que a arte deve ser livre. Mas raro nos damos conta de que esse ser livre tem de ser em nome do que nos seja indiscutível, ou seja, daquilo em face do qual não se é livre. Toda a liberdade só tem sentido contra alguma coisa que se nos opõe. Mas o que nem sempre se pensa é que só tem sentido ser-se contra, se o formos em nome de. Ser livre em relação a tudo equivale a sê-lo em relação a nada, porque nada isso pode justificar. Ser livre em relação a tudo é ter uma liberdade inútil, porque inteiramente disponível. Ser livre em relação a tudo é igual a ser determinado, porque num caso e noutro não há escolha nenhuma, A liberdade é então uma função sem destino e vira-se para si própria como um estômago vazio. Assim ela se destrói no seu significado pela autofagia. O nosso tempo conhece esse destino e o acto de desespero é a forma de o anular. O terrorista, na realidade, inventa um motivo para restaurar a liberdade na sua função própria, como os finalistas buscavam uma finalidade para tudo o que existe. Aí se insere, como sabemos, o impasse da arte. Porque ela não serve para nada, mas teve sempre alguma coisa em função da qual existisse para não servir. E não apenas o que fosse uma função representativa. Não é curioso que isso aconteça com a própria música? Porque ela é, de sua natureza, uma arte «formal». Mas a sua ausência de um «motivo» não o é de um fundamento, de uma razão de ser formal em que nos reconheçamos. Não deriva isso de um «hábito» a que nos não acomodámos ainda, mas da destruição de um valor que lhe subjaz enquanto música, que invisível a orienta e fica em nós como o espírito que a anima. Como em toda a obra de arte. Porque em toda ela o que em nós fica não é bem o que lá está, mas a alma que a fez ser e fica a ressoar em nós, mesmo quando já lhe esquecemos o motivo. Todo o destino humano se insere entre o «porquê» e o «para quê». Mas esses limites são os de uma liberdade que deseja cumprir-se. Um rio define-se nos limites que lhe demarcam um percurso e sem eles seria uma desordem espraiada. Nós exigimos a liberdade mas igualmente a sua razão de ser. Que é que justifica uma luz que nada ilumina e se perde no vazio? Eis porque é um erro curioso esse de supor-se que uma arte religiosa não é uma arte livre. Ora ela só o não é, se estiver a vigiá-la não uma crença mas um inquisidor. É-se livre contra alguma coisa, mas em nome de outra. Fora disso é-se uma estupidificação da Natureza que é de si já bastante estúpida. Resta apenas o que nos resta e é a evidência de que a vida humana é uma razão bastante na sua ausência de razão, para toda a falência de razões. É pouco? É o que temos. Só nos não habituámos a que ela estivesse acima de tudo quanto foi acima. A aceitação da gratuidade. O milagre inútil. Mas assim mesmo um milagre. Não há pergunta sobre o para quê de uma flor que lhe tire o encantamento. O sentido do ser é o ser. E se nos calássemos?
Vergílio Ferreira, Pensar

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