segunda-feira, 30 de abril de 2018


No dia em que António José saiu da ilha, por mar e levando um destino errante (pensando em chegar a Mindanao, onde talvez achasse uma pérola negra na frincha do soalho, ou então o arpão de Queequeg em New-Bedford, um arpão mágico capaz de deter nos mares o horrível Leviatã), olhou para a mancha verde da terra e viu, na estrada rasgada na rocha, uma fileira de hornens e mulheres. Pareceu-lhe gente conhecida, petrificada nesse instante no coração da tarde, moldada pela marcha do tempo em que cada dia é um dia de juízo final. Gonçalo Trastâmara, filho da Beltraneja, com a mão no rosto que assim mascarava. Tristão das Damas, de hercúleo peito, brando no morrer e na vida bravo. O conde de Carvalhal, de testa suada pela angústia do jogo, pobre no leito adamascado. Rosalina, a baronesa de Madalena do Mar, de muitas mortes padecida e de enigmas conservada. Os Cossart, huguenotes de França, loiros como a nobreza de Pau. Miss Phelps, fabricando bordados com riscos de alegra-campos. João de Barros, passageiro clandestino numa história que não chegou ao fim. Rosamund, Margô, Elvirinha e outra gente coroada como Elisabeth da Áustria, escalando a serra num cavalo de empréstimo ou marchando durante dez horas pelos caminhos de hidranjas bravas. Leopoldina, no jardim de Palheiro-Ferreiro, com a sua tristeza de noiva em transe de exílio. Os ghettos de Câmara de Lobos, as esquadras de navegação terrestre vestidas de branco, como para naufragar com honra debaixo das bananeiras-anãs. António José Lago fez um gesto de adeus. Respondeu-lhe da falésia um suspiro como o dum vulcão submerso. Era o génio da ilha que lhe apresentava despedidas. Ele disse que ouvia um baque de machado no cerne do dragoeiro na ilha de Porto Santo.
Agustina Bessa-Luís, A Corte do Norte

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