sábado, 17 de novembro de 2018



Era um pequeno tratado das paixões e, sublinhada com uma tinta parda de tão antiga, havia uma frase que o impressionou «A memória é a fonte de todas as nossas paixões, e sobretudo da do amor.» O anónimo que no ano de 1775 escrevera aquilo era decerto uma pessoa especial. 1755 fora uma data também especial. Com as velhas paredes dos palácios setecentistas de Lisboa caíra também uma certa casta vigorosa e subtil do português para quem a sensibilidade era o estribo das suas empresas. Depois o Marquês impusera no reino a sua férrea marca burguesa. A moral sucedeu à doce inconstância da alma de que a inspiração dum povo aproveita; o bom-senso tomou o lugar do bom-gosto. A paz de espírito foi assegurada pelo uso de regras de vida minuciosas e severas. A gente honesta, amante do meio-termo, proliferou, fez bons negócios, e a insipidez que o cálculo protege passou a ignorar a ambição no seu alto sentido. Camilo saía pelas vinhas nas tardes embaciadas de nevoeiro, e José Augusto dizia-lhe quais as castas de uva de qualidade desaparecidas; donzelinho, terrantes, samarrinho, lourela, abelhal, tudo erarn castas extintas. E castas de homens, quais eram acabadas desde esse tempo de 1531, quando Rui Fernandes, tratador das lonas e bordates de El-Rei, fazia a sua descrição? Camilo olhou com uma curiosidade grosseira aquele rapaz que lhe vinha contar um diálogo sério. Donzelinho, folgosão, bastardo, trincadente, burral, mourisco — de que casta? Um sentimento ufano e selvagem reflectiu-se nesse olhar, ao pensar nas cartas de Fanny.
Agustina Bessa-Luís, Fanny Owen

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