domingo, 16 de abril de 2017

No fundo, que maravilhoso fenómeno que são os olhos do homem, essa jóia entre todas as formações orgânicas sobretudo quando concentra o seu brilho húmido sobre outra forma humana! Preciosa gelatina composta duma substância tão comum como a do resto da criação, ela prova, tal como as pedras preciosas, que as diversas matérias não têm importância em si e que tudo está no seu conjunto engenhoso e feliz. Mucilagem encaixada numa cavidade óssea, uma vez privada de alma, ela está destinada a apodrecer na tumba e a dissolver-se de novo em lama líquida. Mas enquanto subsistir nela a faísca da Vida, saberá lançar admiráveis pontes etéreas por cima de todos os abismos de incompreensão que se possam interpor entre dois seres humanos. Das coisas delicadas e fluídas, convém falar com delicadeza e fluidez; por isso formularei aqui, com precaução, uma observação acessória. Em resumo: a felicidade só se pode encontrar nos pólos extremos das relações humanas onde as palavras não existem ainda ou onde já não existem — no olhar e nos abraços. Só lá se situam o incondicional, a liberdade, o mistério e o entusiasmo irreprimível. Tudo o que existe no intervalo, como contacto e relações sociais, é tíbio e fraco, determinado, condicionado e limitado pelo formalismo e pela tradição burguesa. A palavra, aí torna-se senhora — a palavra, essa intermediária baça e fria primeiro produto duma civilização domesticada e moderada, e tão totalmente estranha à ardente e muda esfera da natureza que cada vocábulo é, de qualquer maneira, um frase por si e em si.
Thomas Mann, As Confissões de Félix Krull, Cavalheiro de Indústria



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