Gosto de pensar porque sei que não tardarei em não pensar. É como ponto de partida que o raciocínio me encanta – gare metálica e fria onde se embarca para o grande Sul. Esforço-me, às vezes, por meditar um grande problema metafísico ou até social, pois sei que a voz rouca do pensamento tem para mim caudas de pavão, que se me irão abrindo se eu esquecer que penso, e que o destino da humanidade é uma porta num muro que não há, e que eu posso portanto abrir para os jardins que me aprouver.
Bendito seja aquele elemento irónico dos destinos que dá aos pobres de vida o sonho como pensamento, assim como dá aos pobres de sonho, ou a vida como pensamento ou o pensamento como vida.
Mas até o sonho como correnteza de pensar se me volve cansando. E então abro os olhos de sonhar, chego à janela e transfiro o sonho para as ruas e os telhados. E é na contemplação distraída e profunda dos aglomerados de telhas separadas em telhados, cobrindo o contágio astral das gentes arruadas, que se me desprende deveras a alma, e não penso, não sonho, não vejo, não preciso; contemplo então deveras a abstracção da Natureza, da Natureza, a diferença entre o homem e Deus.
Trecho inédito do Livro do Desassossego de Bernardo Soares
(o documento que continua à guarda dos familiares do escritor, foi reproduzido na revista Ler de Março de 2009)
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