domingo, 20 de setembro de 2009

"As viagens de comboio longas agradavam-lhe devido ao ritmo embalador que conferiam ao pensamento (...).
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Quando, por fim, dirigiu a atenção para o que se encontrava para lá da janela, fora assaltado por uma misantropia que lhe era familiar e não viu mais na paisagem construída que passava a deslizar do que fealdade e actividade absurda. No seu canto da zona ocidental de Londres, e na sua rotina diária, em que todas as preocupações se centravam em si mesmo, era fácil para Clive pensar na civilização como a soma de todas as artes, associadas ao design, à culinária, aos bons vinhos e a coisas semelhantes. Mas agora parecia-lhe que ela era o que de facto era - quilómetros quadrados de casas modernas mesquinhas, cujo principal objectivo era suportar antenas de televisão e parabólicas, fábricas que produziam tralha inútil para ser anunciada na televisão e, em lúgubres lotes de terreno, filas de camiões para as distribuírem; e, por todo o lado, estradas e a tirania do tráfego. Tudo aquilo fazia lembrar o rescaldo de uma festa desvairada. Ninguém teria desejado que as coisas fossem assim, mas não lhes tinham perguntado. Ninguém planeara aquilo, ninguém quisera aquilo, mas a maioria das pessoas era obrigada a viver ali. Ao observar aquele espectáculo quilómetro após quilómetro, quem poderia suspeitar que Purcell ou Britton, Shakespeare ou Milton, tinham alguma vez existido? De vez em quando, no momento em que o comboio ganhava velocidade e se afastava mais de Londres, o campo aparecia e com ele o início da beleza, ou a recordação dela, até que, segundos mais tarde, se diluía num rio que se transformava numa represa acimentada ou num súbito ermo agrícola sem cercas nem árvores, e estradas, novas estradas a estenderem-se até ao infinito, despudoradamente, como se tudo o que importava fosse estar noutro sítio. No que dizia respeito ao bem-estar de todas as outras formas de vida da Terra, o projecto humano era, não apenas um fracasso, mas um erro do princípio ao fim."
Ian McEwan, Amesterdão

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