domingo, 20 de setembro de 2009

“Tinha chegado o último dia de Julho, o mês preferido de Klingsor, a grande época das festas de Li Tai Pe passara, não voltaria mais, girassóis gritavam no jardim, dourados pelo azul adentro. Nesse dia, acompanhado do fiel Thu Fu, Klingsor foi em romaria a uma região que muito amava: subúrbios queimados, estradas poeirentas ladeadas de árvores velhas e altas, casebres vermelhos e cor de laranja nas margens arenosas do rio, camiões e plataformas de carga dos navios, compridos muros violeta, povo pobre e colorido. Na tarde desse dia sentou-se no pó à beira de um bairro periférico e pintou as tendas e caravanas coloridas de um carrossel itinerante, agachou-se à beira da estrada, no prado escalvado e crestado, fascinado pelas cores fortes das tendas. Apaixonou-se profundamente pelo lilás desbotado da franja de uma tenda, pelo verde e vermelho alegres das caravanas vagarosas; pelas estacas de armação pintadas de azul e branco. Furiosamente esgravatava com cádmio, selvaticamente em cobalto doce e frio, desenhou traços carmim desvanecendo-se através do céu amarelo e verde. Mais uma hora, oh, menos, e depois acabava-se, vinha a noite e amanhã começava já o mês de Agosto, o ardente mês da febre, que mistura na sua taça incandescente tanto medo da morte e tanta inquietação. A foice estava afiada, os dias declinavam, a Morte ria, escondida na folhagem acastanhada. Toca alto e arrojado, cádmio! Com fanfarra bem forte, carmim exuberante! Gargalhada estridente, amarelo-limão! Vem cá, montanha azul escura e longínqua! Venham ao meu coração, árvores baças, verde-poeirento! Como estais cansadas, como deixais afundar os vossos ramos dóceis e resignados! Bebo-vos, queridas visões! Eu crio para vós um simulacro de duração e a imortalidade, eu, o mais transitório, o mais descrente, o mais triste, aquele que de entre vós mais sofre com o medo da morte. Julho ardeu, Agosto em breve terá ardido também, subitamente de encontro a nós o grande fantasma arrepia-nos na folhagem amarela na manhã orvalhada. Num abrir e fechar de olhos, a floresta é varrida pelo mês de Novembro. Subitamente, o grande fantasma ri, subitamente gela-se-nos o coração, subitamente a doce carne rosada desprende-se dos nossos ossos, o chacal uiva no deserto, o abutre entoa enrouquecido o seu canto maldito. Um maldito jornal da capital traz o meu retrato, e por baixo diz: "Pintor excepcional, expressionista, grande colorista, morreu no dia dezasseis deste mês." Cheio de ódio abriu um sulco de azul parisiense por baixo das caravanas verdes dos ciganos. Cheio de amargura quebrou a aresta amarelo de cromo contra o marco de pedra. Com um desespero profundo pôs vermelhão numa mancha que estava em branco, aniquilou o branco exigente, lutou sangrando pela permanência e gritou verde vivo e amarelo napolitano ao Deus inexorável. Suspirando, arremessou mais azul sobre o insípido verde empoeirado, suplicante acendeu luzes fervorosas no céu da tarde. A pequena paleta cheia de cores puras e da mais viva intensidade luminosa era o seu conforto, a sua torre, o seu arsenal, o seu livro de orações, o seu canhão, do qual disparava contra a morte malvada. O púrpura era a negação da morte, o vermelhão era o escarnecer da decadência. O seu arsenal era bom, as suas tropas, pequenas e valentes, estavam alinhadas e brilhavam, radiosos soavam os tiros velozes dos seus canhões. Não adiantava nada, todos os disparos eram em vão, porém, disparar era bom, era felicidade e consolo, era ainda viver, era ainda triunfar.”
Hermann Hesse, O Último Verão de Klingsor

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