"O mais insignificante estagiário numa firma de projecção mundial tem todo o mundo a girar à sua volta, continentes espreitam por cima do seu ombro, e por isso nada do que ele faz é destituído de importância; à volta de um escritor solitário, metido no seu gabinete, giram, quando muito, as moscas, por mais que ele se esforce. Isto é tão evidente que muitos homens, quando começam a trabalhar com o material da vida, acham que tudo aquilo que antes os ocupou não passa de «literatura», ou seja, produz apenas um efeito fraco e confuso, quase sempre contraditório e que a si próprio se anula, desproporcionado em relação à importância que se lhe atribua. Não era bem este o caso de Arnheim, que não negava as belas emoções da arte, nem via como loucura ou fantasia alguma coisa que o tivesse afectado profundamente. No momento em que reconheceu a superioridade da sua conduta adulta sobre os devaneios da juventude, procurou chegar a uma fusão dos dois tipos de experiência, guiado pelos novos conhecimentos que a idade madura lhe trouxera. Afinal, mais não fazia do que a maior parte das pessoas cultas que, depois de encetarem uma vida profissional, não querem renegar os seus anteriores interesses, encontrando, pelo contrário, uma relação mais calma e amadurecida com os impulsos sonhadores da juventude. A descoberta do grande poema da vida, do qual sabem ser co-autores, dá-lhes de novo a coragem do diletante que haviam perdido nos tempos em que queimavam os seus próprios poemas. Escrevendo com o material da vida, podem ver-se verdadeiramente como especialistas natos, e procuram impregnar de responsabilidade intelectual a sua acção diária, sentem-se colocados perante mil pequenas decisões, para que essa acção tenha um sentido ético e belo, tomam como exemplo o que julgam ter sido a vida exemplar de Goethe, e declaram que sem música, sem natureza, sem a contemplação do jogo inocente das crianças e dos animais e sem um bom livro a vida não lhes dá alegria. Entre os Alemães é ainda esta classe média espiritualizada a maior consumidora das artes e de uma literatura não demasiado difícil; mas, compreensivelmente, os membros dessa classe olham pelo canto do olho para a arte e a literatura, que antes viam como a realização plena dos seus desejos, como se de um estádio preliminar se tratasse - ainda que numa forma mais perfeita do que aquela que alguma vez alcançaram -, ou então não lhe dão mais valor do que um fabricante de folha metálica daria a um escultor de figurinhas de gesso, se tivesse a fraqueza de achar belos tais produtos."
Robert Musil, O Homem sem Qualidades
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