Ulrich perguntava-se muitas vezes se haveria uma relação entre essa época - em que um fotógrafo podia sentir-se genial porque bebia, usava camisa aberta e, com recurso a uma técnica moderna, revelava a todos os contemporâneos que se colocavam diante da sua objectiva a nobreza de alma que possuía - e uma outra em que só os cavalos de corrida são considerados geniais devido à sua insuperável capacidade de se esticarem e encolherem. As duas épocas são diferentes: o presente olha para o passado do alto do seu orgulho, e se o passado, por acaso, tivesse chegado mais tarde, olharia também para o presente do alto do seu orgulho. Mas no essencial assemelham-se muito, porque em ambos a imprecisão e a omissão das diferenças decisivas desempenham o papel principal. Toma-se pelo todo uma parte daquilo que é dominante, uma vaga analogia pela concretização da verdade, e empalha-se com o que a moda do momento oferece o odre oco de uma grande palavra. Resulta muito bem, mas não dura muito. As pessoas que tomavam a palavra no salão de Diotima não estavam erradas em nada do que diziam, porque os conceitos que usavam eram imprecisos como figuras numa lavandaria cheia de vapor. «Esses conceitos a que está presa a vida, como a águia às suas asas!», pensava Ulrich. «Esses inúmeros conceitos morais e estéticos da vida, por natureza tão frágeis como as duras montanhas na imprecisão da distância!» Multiplicavam-se nas línguas delas por rotação, e não era possível falar por alguns momentos de nenhuma das suas ideias sem saltar involuntariamente para a seguinte.
Em todos os tempos este tipo de pessoas encontraram para si próprias o nome de «tempos modernos». A expressão é como um saco com o qual quiséssemos apanhar os ventos de Éolo; é a desculpa permanente para não pôr as coisas em ordem - e isto quer dizer: na sua própria ordem, objectiva, e não no contexto imaginário de uma coisa absurda. E no entanto há nisto uma profissão de fé. Essas pessoas eram alimentadas, da forma mais estranha, pela convicção de terem por missão repor a ordem no mundo. Se designarmos por «meia-inteligência» o que elas fazem para alcançar esse fim, chegamos à notável conclusão de que a segunda metade dessa meia- -inteligência, nunca nomeada (mas podemos dizer que é a metade estúpida, nunca exacta nem correcta), possui uma inesgotável força de renovação e fecundidade. Há nela vida, capacidade de mudança, inquietação, variação de pontos de vista. Mas essas mesmas pessoas intuíam provavelmente o que se passava. Isso sacudia-as, soprava-lhes nas cabeças, viviam numa época nervosa, e qualquer coisa não batia certo, cada um se achava inteligente, mas todos juntos sentiam-se estéreis. E se ainda por cima tivessem talento - e a sua imprecisão de modo nenhum excluía isso - o que se passava nas suas cabeças era como ver o tempo e as nuvens, os comboios, os fios telegráficos, as árvores e os animais e todo o cenário animado do nosso querido mundo através de uma vidraça estreita e suja; e ninguém iria notar facilmente isso na sua própria janela, mas apenas na do vizinho.
Um dia, Ulrich exigira-lhes, por brincadeira, dados precisos sobre aquilo que queriam dizer. Olharam todos para ele desconfiados, chamaram à sua exigência visão mecanicista da vida e cepticismo, e afirmaram que as coisas mais complicadas só poderiam ser resolvidas da forma mais simples, e que por isso os tempos modernos, a partir do momento em que se libertassem do presente, seriam uma coisa muito simples. Contrariamente a Amheim, Ulrich não os impressionava minimamente, e a tia Jane ter-lhe-ia feito uma festa e dito: «Compreendo-os muito bem; a tua seriedade perturba-os.» "
Robert Musil, O Homem sem Qualidades
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