sexta-feira, 20 de novembro de 2009

"Com uma arte grandiosa e diversa, geramos uma ilusão que nos ajuda a viver paredes meias com as coisas mais monstruosas sem perder a tranquilidade, porque reconhecemos nesses esgares petrificados do universo uma mesa ou uma cadeira, um grito ou um braço estendido, uma velocidade ou um frango assado. Entre um abismo celeste aberto sobre as nossas cabeças e um abismo celeste camuflado sob os nossos pés, somos capazes de nos sentir tão tranquilos à superfície da Terra como num quarto fechado. Sabemos que a vida se perde tanto nas desumanas vastidões do espaço como na desumana estreiteza do mundo dos átomos, mas entre as duas coisas tratamos uma série de configurações como coisas do mundo, sem nos deixarmos minimamente perturbar pela evidência de que isso significa tão-somente uma preferência pelas impressões que captamos a partir de uma certa distância média. Tal comportamento está bastante abaixo das possibilidades do nosso entendimento, mas prova precisamente que os sentimentos desempenham aí um papel decisivo. E com efeito, os mais importantes dispositivos intelectuais da humanidade servem a experiência de um estado de espírito estável, e todos os sentimentos, todas as paixões do mundo são nada frente ao esforço enorme, mas totalmente inconsciente, que a humanidade faz para manter essa sua serena tranquilidade! Quase não vale a pena falar disso, de tal modo o seu funcionamento é impecável. Mas, se virmos mais de perto, é extremamente artificial o estado de consciência que confere ao homem o porte íntegro no meio do sistema dos astros e lhe permite, face ao quase infinito desconhecimento do mundo, meter dignamente a mão entre o segundo e o terceiro botão do casaco. E, para conseguir isso, todo o ser humano, o sábio tal como o idiota, não recorre apenas aos seus artifícios; estes sistemas pessoais de artifícios são também engenhosamente inseridos nos dispositivos de equilíbrio morais e intelectuais da sociedade e da totalidade que, a uma escala maior, servem os mesmos fins. Esta engrenagem assemelha-se à da grande Natureza, em que todos os campos de forças do universo agem sobre o da Terra sem que se dê por isso, porque os acontecimentos terrenos são o resultado de tudo isso; e o alívio espiritual assim conseguido é tão grande que tanto os mais sábios como qualquer rapariguinha ignorante se sentem inteligentes e bons nessa sua condição imperturbada.
Mas de tempos a tempos, depois dessas fases de contentamento, a que também poderíamos chamar, em certo sentido, estados obsessivos da emoção e da vontade, parece que o contrário se abate sobre nós, ou, para exprimir a ideia em termos de manicómio, dá-se subitamente na Terra uma intensa fuga de ideias, passada a qual toda a vida humana se deslocou para novos centros e eixos. A causa profunda de todas as grandes revoluções, que as explica mais do que o seu pretexto próximo, não reside na acumulação de condições insuportáveis, mas no desgaste da coesão em que se apoiava a satisfação artificial das almas. Poderíamos evocar a este propósito a fórmula de um filósofo dos começos da Escolástica, que em latim diz: Credo, ut intelligam, e que, com alguma liberdade, se poderia traduzir nos seguintes termos em linguagem de hoje: «Senhor meu Deus, concede ao meu espírito um crédito à produção!» Provavelmente, todos os credos humanos são casos especiais de crédito. No amor e nos negócios, na ciência e no salto em comprimento, temos de acreditar antes de ganhar e alcançar o que se pretende - e seria possível que isso não se aplicasse também à vida no seu todo? Por mais fundamentada que seja a sua ordem, há sempre nela uma parte de crença voluntária nessa ordem, que assinala, como numa planta, o lugar onde irrompe o rebento. E no momento em que chega ao fim essa fé para a qual não há prestação de contas nem cobertura, a derrocada não tardará a chegar: as épocas e os impérios desmoronam-se como os negócios quando lhes falta o crédito!"
Robert Musil, O Homem sem Qualidades

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