Lembrando-se de que o impossível encontro desses dois caminhos se tinha manifestado nos últimos tempos na relação tensa entre literatura e realidade, símbolo e verdade, Ulrich apercebeu-se de repente de que isso significava muito mais do que uma ocasional inspiração no meio de uma dessas conversas que se cruzavam como caminhos sem destino e que ultimamente tinha mantido com os menos adequados interlocutores. Na verdade, encontramos desde as origens da história humana estas duas formas de comportamento, a simbólica e a inequívoca. O ponto de vista do inequívoco é a lei do pensamento e da acção despertos, que domina quer uma conclusão irrefutável da lógica quer o cérebro de um chantagista que pressiona passo a passo a sua vítima, uma lei que resulta das necessidades da vida, às quais sucumbiríamos se não fosse possível dar uma forma inequívoca às coisas. O símbolo, por seu lado, é a articulação de ideias próprias do sonho, é a lógica deslizante da alma, a que corresponde o parentesco das coisas nas intuições da arte e da religião; mas também tudo o que na vida existe de vulgares inclinações e aversões, de concordância e repulsa, de admiração, submissão, liderança, imitação e seus contrários, todas estas relações do homem consigo e com a natureza, que ainda não são puramente objectivas e talvez nunca venham a sê-lo, só podem ser entendidas em termos simbólicos. Aquilo a que se chama a humanidade superior mais não é, com certeza, do que a tentativa de fundir estas duas metades da vida, a do símbolo e a da verdade, cuidadosamente separadas antes. Mas quando separamos num símbolo tudo aquilo que talvez possa ser verdadeiro do que é apenas espuma, o que acontece geralmente é que se ganha um pouco de verdade, mas se destrói todo o valor que o símbolo tinha. Por isso, talvez esta separação tenha sido inevitável na evolução do espírito, mas produziu o efeito que se obtém quando se ferve uma substância para a engrossar e, ao fazê-lo, provocamos a evaporação do que nela existe de mais intrínseco. Hoje é quase impossível não ter a impressão de que os conceitos e as regras da vida moral são apenas símbolos recozidos, envoltos nos insuportáveis e gordurosos vapores da cozinha da humanidade. E se nos for permitido um pequeno desvio, acrescentaremos que essa impressão que vagamente embebe todas as coisas teve também o efeito de gerar qualquer coisa a que o presente, a ser honesto, deveria chamar a sua veneração da baixeza. De facto, hoje mente-se menos por fraqueza, e mais pela convicção de que um homem que domina a vida tem de saber mentir. Somos violentos porque a realidade inequívoca da violência, ao cabo de tanta conversa ineficaz, produz o efeito de uma libertação. Juntamo-nos em grupos porque a obediência permite fazer tudo aquilo que há muito não somos capazes de fazer por convicção, e a hostilidade desses grupos proporciona às pessoas a reacção recíproca e imparável da vingança, ao passo que o amor em breve arrefeceria. E isto tem menos a ver com a questão da bondade ou da maldade dos homens do que com o facto de que eles perderam a noção da ligação entre grandeza e baixeza. Outra consequência contraditória desta discrepância é também o excesso de ornamentos espirituais com que hoje se enfeita a desconfiança em relação ao espírito. O cruzamento das visões filosóficas do mundo com outras actividades que só dificilmente as toleram, como a política, a mania generalizada de fazer de qualquer ponto de vista um princípio e de tomar qualquer princípio por um ponto de vista, a necessidade dos fanáticos de todos os quadrantes de reproduzirem à sua volta, como numa sala de espelhos, uma revelação que lhes foi feita - todos estes fenómenos tão comuns não significam o que pretendem ser, um esforço para melhorar a humanidade, mas antes uma falta de humanidade. No conjunto, ficamos com a impressão de que teríamos primeiro de afastar inteiramente das relações humanas a alma que se alojou aí por engano. E no momento em que pensava nisto, Ulrich sentiu que a sua vida, a ter algum sentido, seria este: que as duas esferas fundamentais da humanidade se mostravam aí separadas, opondo-se uma à outra nos efeitos que produziam. É evidente que existem hoje pessoas assim, mas por enquanto estão sozinhas, e sozinho ele não conseguia voltar a unir as metades separadas. Não tinha ilusões sobre o valor destas suas experiências mentais; talvez elas nunca conseguissem encadear pensamentos fora de uma sequência lógica, mas as coisas passavam-se como se colocasse uma escada sobre a outra, e a ponta oscilasse a uma altura muito distante da vida natural. E isso causava-lhe uma profunda repulsa."
Robert Musil, O Homem sem Qualidades
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