sábado, 14 de novembro de 2009

"O grande-escritor é o sucessor do príncipe do espírito, e assumiu no mundo das ideias o lugar que os ricos ocuparam em substituição dos príncipes no mundo da política. Do mesmo modo que o príncipe do espírito é um fenómeno do tempo dos príncipes, assim também o grande-escritor pertence ao tempo das grandes guerras e dos grandes armazéns. É uma forma particular da associação do espírito com as coisas grandes. O mínimo que se pode pedir a um grande-escritor é, por isso, que tenha automóvel. Tem de viajar muito, ser recebido por ministros, fazer conferências; dar aos líderes da opinião pública a impressão de que representa uma força moral não desprezível; é chargé d'affaires do espírito da nação quando é preciso mostrar ao estrangeiro o nosso humanitarismo; em casa, recebe convidados notáveis e tem de se preocupar ainda com o seu negócio, que tem de gerir com a ductilidade de um artista de circo, sem que se note o esforço que dispende. Porque o grande-escritor de modo nenhum se pode confundir com o simples escritor que ganha muito dinheiro. Nunca precisa de ser ele a escrever «o livro mais lido» do ano ou do mês, basta que não tenha nada a objectar a este tipo de apreciação. Na verdade, ele está em todos os júris de prémios, assina todos os manifestos, escreve todos os prefácios, profere todos os discursos de aniversário, manifesta-se a propósito de todos os acontecimentos importantes e está sempre a ser chamado quando se trata de mostrar como chegámos longe. O grande-escritor, mau grado todas as suas actividades, nunca representa toda a nação, mas apenas a sua parte mais progressista, o grosso dos eleitos, já quase uma maioria, e isso rodeia-o de uma permanente tensão espiritual. Naturalmente, é a vida, na sua forma actual, que conduz à grande indústria do espírito, do mesmo modo que, inversamente, a indústria nos força a avançar no sentido do espírito, da política e da dominação da consciência pública; os dois fenómenos encontram-se a meio caminho. Por isso o papel do grande-escritor não se liga a uma pessoa em particular, mas coloca uma figura no tabuleiro do xadrez social, com regras de jogo e obrigações ditadas pela época. Os que, em cada época, se preocupam com o bem são de opinião que não lhes serve de muito haver alguém com espírito (há tanto espírito por aí que mais um, menos um, pouco adianta, e cada um acha que tem o suficiente para as suas próprias necessidades), que o importante é combater a barbárie sem espírito, e isso só se faz mostrando o espírito, vendo-o, levando-o a agir; e como o grande-escritor é o que melhor serve esse propósito, melhor do que um um escritor ainda maior, que se arrisca a não ser compreendido por muitos, faz-se tudo o que é possível para que a grandeza se mostre na dimensão que merece.
Vistas assim as coisas, não se pode censurar muito Arnheim por ser um dos primeiros a dar corpo a esta ideia, de forma experimental, mas já bastante acabada - isto, apesar de ser necessária uma certa predisposição inata para a função. Quase todos os escritores gostariam de ser grandes-escritores, se conseguissem lá chegar. Mas passa-se aí o mesmo que com as montanhas: entre Graz e Sankt Põlten há uma série de montes que até são muito parecidos com o Monte Rosa - só lhes falta altura. O pressuposto indispensável para se ser um grande-escritor é, então, o de escrever livros e peças de teatro que sirvam para todos os níveis, do mais alto ao mais baixo. Antes de produzir algum bom efeito, é preciso primeiro produzir efeito: este princípio é a base de toda a existência como grande-escritor. É um princípio miraculoso, eficaz contra todas as tentações da solidão, por excelência o princípio goethiano do sucesso: se nos movermos apenas num mundo que nos é propício, tudo o resto virá por si."

Robert Musil, O Homem sem Qualidades

Sem comentários:

Enviar um comentário