terça-feira, 1 de dezembro de 2009

"- Desde há séculos - continuou Ulrich - que o mundo conhece a verdade do pensamento e por isso, naturalmente e até um certo ponto, a liberdade de pensamento. Nesse mesmo período de tempo, a sensibilidade não foi à severa escola da verdade, nem à da liberdade de movimentos. De facto, cada moral, durante o seu reinado, apenas regulamentou a sensibilidade, e ainda assim de modo pouco flexível, na medida em que determinados princípios e sentimentos fundamentais lhe servissem para agir como desejava; o resto, deixou-o ao livre arbítrio, ao jogo das emoções individuais, às tentativas inseguras da arte e à especulação académica. A moral adaptou, assim, os sentimentos às necessidades da moral e descurou o seu desenvolvimento, apesar de depender deles. Ela própria é a ordem e a unidade da sensibilidade.
(...)
Sem que fosse essa a sua intenção, repetia-se o contraste dessa manhã, em que ele desempenhara o papel pouco agradável do professor. Não conseguia evitar isso. A moral não era para ele nem uma imposição nem sabedoria abstracta, mas a totalidade infinita das possibilidades de vida. Acreditava numa capacidade de potenciação da moral, em graus da sua vivência, e não apenas, como é habitual, em graus do seu conhecimento, como se ela fosse uma realidade acabada para a qual o ser humano simplesmente não é suficientemente puro. O mais comum é entender-se por moral uma espécie de imperativos policiais que mantêm a vida em ordem; e como nem a vida lhes obedece, eles ganham a aparência de não serem totalmente realizáveis, e desta forma assim precária se transformam num ideal. Mas não se pode colocar a moral a esse nível. A moral é imaginação. Era isto que ele queria que Agathe reconhecesse. E também que a imaginação não é a arbitrariedade. Se entregarmos a imaginação à arbitrariedade, ela vinga-se. As palavras vibravam na boca de Ulrich. Esteve prestes a falar de uma diferença, muito pouco considerada, a de que as diversas épocas desenvolveram à sua maneira a razão, mas fixaram e fecharam da mesma maneira a imaginação da moral. Esteve prestes a falar disso porque as consequências de tudo isso são: uma linha mais ou menos recta e ascensional da razão e dos seus derivados, apesar de todo o cepticismo, contraposta a um montão de ruínas da sensibilidade, das ideias, das possibilidades de vida, acumulando-se em camadas nas quais foram depositadas como eternas coisas secundárias, para serem de novo abandonadas. E porque há uma outra consequência: afinal, existe um sem-número de possibilidades de construir uma opinião desta ou daquela maneira quando se chega ao domínio do essencial da vida, mas nenhuma possibilidade de as unificar e pôr de acordo. Porque há ainda uma consequência: essas opiniões entrechocam-se, porque não há possibilidade de chegarem a um entendimento. Porque, em resumo, a consequência final é: a vida dos afectos humanos é sacudida como água numa garrafa apoiada em falso."
Robert Musil, O Homem sem Qualidades

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