terça-feira, 1 de dezembro de 2009

"O ser humano não consegue viver sem paixão. E a paixão é o estado no qual todos os seus sentimentos e ideias se encontram no mesmo espírito. Tu podes pensar, quase ao contrário, que é o estado em que um sentimento se torna todo-poderoso, um único sentimento que atrai a si todos os outros - um arrebatamento! Não, não querias dizer nada? Seja como for, é assim. Também é assim. Mas a força de uma tal paixão é imparável. Os sentimentos e as ideias só ganham continuidade quando se apoiam uns nos outros, na sua totalidade, têm de se orientar no mesmo sentido e arrastam-se uns aos outros. E o ser humano tenta por todos os meios, pela droga, pela ilusão, pela sugestão, pela crença, pela convicção, por vezes apenas recorrendo ao efeito simplificador da estupidez, criar um estado semelhante àquele. Acredita nas ideias, não por elas às vezes serem verdadeiras, mas porque tem de acreditar em alguma coisa. Porque tem de manter os afectos em ordem. Porque tem de tapar com alguma ilusão o buraco entre as paredes da vida, para não deixar que os seus sentimentos se espalhem ao vento. O caminho certo seria o de, em vez de se entregar a estados ilusórios, procurar pelo menos as condições da autêntica paixão. Mas, feitas as contas, embora o número de decisões que dependem do sentimento seja infinitamente superior ao daquelas que se podem tomar com a pura razão, e todos os acontecimentos decisivos para a humanidade nasçam da imaginação, só as questões da razão se mostram ordenadas de forma suprapessoal; para o resto, nunca se fez nada que mereça o nome de esforço comum ou que sugira sequer a consciência da sua desesperada necessidade.
(...)
- Não está à vista de toda a gente? Hoje estamos confrontados com um excesso de possibilidades de sentir e de viver. Mas esta dificuldade não será parecida com aquela que a razão tem de resolver quando se vê diante de uma grande massa de factos e de uma história das teorias? E para ela encontrámos um método aberto e no entanto rigoroso, que não preciso de lhe descrever. O que eu pergunto é se não seria possível pensar em qualquer coisa de semelhante também para o sentimento. Todos queremos com certeza saber por que razão estamos aqui, é essa a principal fonte de todas as violências do mundo. Outros tempos, com meios insuficientes, procuraram responder a isso, mas a grande época da experiência ainda não o fez a partir do seu próprio espírito ...
(...)
Ulrich sabia que tudo estava ainda pouco claro. O que tinha em mente não era nem uma «vida de investigador» nem uma vida «à luz da ciência», mas uma «busca do sentimento» semelhante à busca da verdade, com a diferença de que o que ele procurava não era a verdade."
Robert Musil, O Homem sem Qualidades

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