Mal acabei de ler, o fantasma de Bernard apareceu à minha frente. Cruzou as pernas compridas e uniu as pontas dos dedos.
«Cara a cara com o mal? Eu digo-te o que foi que ela enfrentou nesse dia: um bom almoço e um pouco de mexeriquice maldosa de aldeia! Quanto à vida interior, meu caro rapaz, tenta tê-la com o estômago vazio. Ou sem água limpa. Ou quando tiveres de partilhar um quarto com outras sete pessoas. Mas é claro que, quando todos tivermos segundas casas em França ... Compreendes, da maneira como as coisas estão a passar-se neste pequeno planeta sobrepovoado, precisamos de um conjunto de ideias, mas têm de ser muito boas!»
June respirou fundo. Estavam a ajustar contas ...
Desde a morte de June, altura em que herdámos a bergerie, Jenny, eu e os nossos filhos temos passado todas as férias aqui. Tem havido ocasiões, no Verão, em que dou comigo sozinho, à última luz púrpura do entardecer, deitado na rede debaixo da tamargueira em que June costumava deitar-se, maravilhando-me com todas as forças históricas e pessoais do mundo, com as enormes e minúsculas correntes que tiveram de se aliar e combinar para que este lugar se tornasse nosso: uma guerra mundial, um jovem casal, no fim da guerra, impaciente por experimentar a liberdade, um funcionário governamental no seu carro, a resistência francesa, a Abwehr, um canivete, o caminho de Mme Auriac - doux et beau -, a morte de um jovem numa motocicleta, as dívidas que o irmão pastor teve de saldar, o encontro, da parte de June, de segurança e transformação nesta soalheira plataforma de terra.
Mas é aos cães pretos que volto com mais frequência.
Eles perturbam-me quando considero a felicidade que lhes devo, especialmente quando penso neles, não como animais, mas sim como cães-espíritos, encarnações. June disse-me que ao longo de toda a vida os viu algumas vezes, os viu realmente, na retina, nos vertiginosos segundos antes de adormecer. Correm pelo carreira abaixo para a gorge de Vis, o maior a deixar um rasto de sangue nas pedras brancas. Atravessam a linha de sombra e embrenham-se mais profundamente onde o sol nunca chega, e o afável maire, embriagado, não manda persegui-los, porque os cães estão a atravessar o rio na calada da noite e a abrir, à força, um caminho pelo outro lado acima para atravessarem o causse. E, quando o sono se instala, estão a afastar-se dela, manchas pretas no cinzento da alvorada, a desaparecer, enquanto avançam nos sopés das montanhas, de onde voltarão para nos perseguirem e atormentarem, algures na Europa, noutra época."
Ian McEwan, Cães Pretos
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