domingo, 21 de março de 2010

"Deus seja louvado por nos ter dado a solidão ... Agora estou só.
A pessoa quase desconhecida foi-se embora, foi apanhar um comboio, ou um táxi, para ir não sei onde ver alguém que não conheço. Já não está aqui o rosto que me olhava. Não sinto já a pressão do seu olhar. Ficaram as chávenas de café vazias. Não há ninguém sentado nas cadeiras. E já ninguém virá sentar-se a estas mesas para jantar.
Quero entoar uma canção de agradecimento. Que Deus seja louvado pela solidão que nos concede. Quero estar sozinho. Quero lançar para longe de mim o véu do ser, esta nuvem que se altera ao menor sopro, de dia e de noite, cada dia e cada noite. Enquanto estive sentado a esta mesa fui mudando. Vi como o céu se modificava. Vi as nuvens cobrir as estrelas, depois libertarem-nas e de novo as cobrirem. Agora ninguém me vê; por isso deixei de mudar. Deus seja louvado por esta solidão que me libertou da pressão do olhar, da solicitação do corpo, da necessidade da palavra e da mentira.
O meu caderno repleto de frases caiu ao chão. Jaz debaixo da mesa para ser varrido pela mulher da limpeza, que virá amanhã de manhã com o seu passo cansado, para juntar os pedaços de papel, bilhetes de autocarro e papéis com anotações amassados em bolas. Qual é a frase sobre a lua? E a frase sobre o amor? Que nomes existem para designar a morte? Não sei! Necessito de uma linguagem ingénua como a dos amantes, palavras de uma sílaba apenas como a que as crianças usam quando entram num quarto e encontram a sua mãe a costurar e apanhem um fio de lã colorida, uma pluma ou um pedaço de chita. Preciso de um gemido, de um grito. Não necessito de palavras quando, deitado numa vala, vejo a tempestade que me ignora agitar o céu sobre os campos pantanosos. Não necessito de nada que seja exacto. De nada que tenha os pés solidamente assentes na terra. Nem de nenhum desses amáveis ecos que soam e ressoam de nervo em nervo, dentro do nosso peito, insensata música de frases mentirosas. Abandonei as frases.
Como é preferível o silêncio! A chávena de café, a mesa. Como é preferível estar sentado nesta sala vazia, como a solitária ave marinha pousada numa estaca. Deixem-me ficar aqui para sempre, entre estas simples coisas, esta chávena de café, esta faca, este garfo, coisas em si, que me deixam ser eu. Não venham perturbar-me com a insinuação de que é tarde e precisam de fechar·. Daria de boa vontade tudo quanto possuo para que me não perturbem, para que me deixem ficar para sempre sentado neste lugar, silencioso e solitário.
Mas agora o chefe dos empregados reaparece depois de ter terminado a sua refeição; franze as sobrancelhas. Tira do bolso o seu lenço de pescoço e prepara-se ostensivamente para partir. Têm de se ir embora, de correr os estores, dobrar as toalhas e de passar um pano húmido debaixo das mesas.
O diabo os leve. Apesar de ter rompido com tudo e da minha fadiga, tenho de me levantar, procurar o casaco que me pertence, enfiar os braços nas mangas, proteger-me contra o frio nocturno e sair. Eu, eu, eu, cansado como estou, esgotado como estou, gasto de tanto roçar o nariz pela superfície das coisas, até eu, um homem já idoso e cujo corpo começa a ser demasiado pesado e que não gosta de fazer esforços, sou obrigado a sair para apanhar o último autocarro.
Vejo de novo a rua familiar. As luzes da grande cidade já não iluminam o firmamento. O céu está escuro como o osso de uma baleia polido pelo tempo. Mas lá em cima qualquer coisa clareia, uma lâmpada ou talvez a madrugada que chega. Agora há uma certa agitação, pardais chilreiam nos plátanos. Por todo o lado se espalha o pressentimento do dia que nasce. Não, não lhe chamarei aurora. Que é a aurora na cidade, para um homem já idoso que de pé na rua olha o céu com um ligeiro sentimento de vertigem? A aurora é um clarear do céu, uma espécie de renovação. Outro dia, outra sexta-feira, outro vinte de Março, Janeiro ou Setembro. Uma vez mais o mundo desperta. As estrelas retrocedem e extinguem-se. É mais sombria a separação das ondas. A neblina adensa-se sobre os campos. O vermelho sobe às pétalas das rosas, mesmo à da pálida roseira que se debruça à janela de um quarto. Um pássaro canta. Os camponeses acendem as luzes das casas. Sim, é a eterna renovação, o incessante movimento.
E também dentro de mim a onda se ergue. Cresce, arqueia o dorso. Uma vez mais sinto renascer em mim um desejo, qualquer coisa que vem do mais fundo de mim, como o altivo cavalo que o cavaleiro esporeia e em seguida refreia. Tu, sobre quem cavalgo, diz-me que inimigo vemos agora avançar contra nós, neste momento em que golpeias a calçada com os teus cascos? É a Morte.
A Morte é o nosso inimigo. É contra a Morte que cavalgo de lança em riste e os cabelos flutuando ao vento, como os de um jovem, como os de Percival quando galopava na Índia. Cravo as esporas nos flancos do meu cavalo. Invencível e indómito é contra ti que combato, oh Morte!"
Virginia Woolf, As Ondas

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