sábado, 6 de março de 2010

"Durante quantos meses, disse Susan, quantos anos, subi a correr estas escadas, em sombrios dias de Inverno, em frescos dias de Primavera? Agora estamos em pleno Verão. Subimos para nos mudarmos, para vestirmos roupas brancas de ténis - Jinny e eu e Rhoda que vem atrás de nós. Conto os degraus enquanto subo, conto cada degrau como uma coisa definitivamente passada. Do mesmo modo, todas as noites arranco do calendário o dia que acabou e amarroto-o numa pequena bola. Faço-o para me vingar enquanto Betty e Clara rezam ajoelhadas. Eu não rezo. Vingo-me do dia, descarregando o meu ódio contra as suas imagens. Agora estás morto, digo, dia passado no colégio, dia odiado. Esta gente conseguiu dar a todos os dias de Junho - hoje são já 25 - o mesmo ar limpo e arranjado, com as mesmas pancadas de gongo, as mesmas lições, as mesmas ordens para nos lavarmos, mudarmos de roupa, trabalharmos, comermos. Ouvimos missionários vindos da China. De carruagem pelo asfalto das estradas, fomos ouvir concertos e visitar galerias de arte.

Lá em casa, o feno ondula nos campos. O meu pai está encostado à cerca a fumar. Uma porta, depois outra, bate dentro de casa, quando o ar do Verão atravessa os corredores vazios. Talvez um quadro antigo oscile na parede. Uma pétala cai de uma jarra cheia de rosas. As carroças da quinta deixam tufos de feno pelas sebes.(...)"
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"- Arranquei do calendário os dias de Maio e de Junho, disse Susan e vinte e dois dias de Julho. Arranquei-os e amarfanhei-os, e por isso já só existem como um peso no meu coração. São dias mutilados, como borboletas nocturnas com as asas arrancadas, incapazes de voar. Já só faltam oito dias. Dentro de oito dias, descerei do comboio e ficarei parada no cais às seis e vinte e cinco. A minha liberdade vai então desabrochar, fazendo estalar todas as obrigações que me tolhem e diminuem - os horários, a ordem, a disciplina, o ter de estar aqui e ali a horas certas. O dia explodirá de brilho quando eu abrir a porta e vir o meu pai com o seu velho chapéu e as polainas. Vou tremer. Romper em lágrimas. Depois, na manhã seguinte, levanto-me de madrugada. Saio pela porta da cozinha. Irei pelo paul, ouvindo trovejar atrás de mim os grandes cavalos montados por fantasmas que de súbito se detêm. Verei a andorinha roçando a erva. Vou atirar-me para um banco junto ao rio e ficar a ver os peixes deslizando entre os juncos. Terei nas palmas das mãos as marcas das agulhas dos pinheiros. Então poderei desdobrar e examinar com atenção tudo o que aqui nasceu em mim, qualquer coisa de duro. Porque alguma coisa cresceu dentro de mim, através do Inverno e do Verão, dos dormitórios e escadarias. (...).
Voltarei a casa por trémulas áleas sob as folhas do castanheiro. Encontrarei uma velha empurrando um carrinho com gravetos de lenha. Depois o pastor. Mas não conversaremos. Regressarei pela horta, verei as folhas das couves cobertas de orvalho e, no jardim, a casa com janelas que as cortinas cegam. Subirei ao meu quarto e passarei em revista as minhas coisas cuidadosamente fechadas no armário: as minhas conchas, os meus ovos de pássaro, as minhas estranhas ervas. Darei de comer aos meus pombos e ao meu esquilo. Irei ao canil escovar o meu spaniel. Desse modo, pouco a pouco, afastarei do meu coração essa coisa dura que nele cresceu. Mas aqui as sinetas não param de tocar e há ruídos de pés arrastando-se sem descanso."
Virginia Woolf, As Ondas

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