sexta-feira, 5 de março de 2010

"E assim, naquele dia, depois das festas passadas, Yannakos entrou no estábulo escuro onde dormia, sonhando, o seu querido burrinho. Havia ali uma temperatura morna, respirava-se o vapor que subia do estrume. O cheiro do mundo nos primeiros anos da Criação devia ser igual.
O animal abriu tranquilamente os grandes olhos doces, voltou a cabeça e viu Yannakos. Reconheceu o seu companheiro de caminhadas e de miséria, que todos os dias o carregava com um fardo pesado, o levava pelas aldeias e o tornava a trazer para aquele estábulo pequeno, onde lhe dava de beber água pura e a comer palha e aveia. Reconheceu-o, levantou a cauda e pôs-se a zurrar alegremente.
O homem aproximou-se, acariciou-lhe as ancas negras e luzidias, o ventre branco de penugem macia e o pescoço quente; depois meteu a mão numa das orelhas grandes em forma de funil; com a outra agarrou-lhe no focinho e, puxando-o para si, começou a falar-lhe.
«Youssoufaki (era o nome terno que lhe dava às escondidas, quando estavam sós, com receio de que o agá o viesse a saber), as festas acabaram, Cristo ressuscitou, nós passámos dias bons, não tens de que te queixar. Eu trazia-te ração a dobrar. Apanhava erva fresca para te abrir o apetite e, como presente de Páscoa, dei-te um colar de contas azuis, que te pus ao pescoço para te preservar dos maus-olhados. Também pendurei nele um dente de alho como amuleto, para maior segurança. Porque tu és muito bonito, meu Youssoufaki, e os homens têm olhos cheios de maldade; seriam capazes de, por inveja, te deitarem mau-olhado. E então que havia de ser de mim sem ti? Não te esqueças que ficámos ambos sós e que mais ninguém tenho no mundo. Não tive filhos; a minha mulher morreu atabafada por ter comido chícharos de mais; só me restas tu, meu Youssoufaki. E hoje trago-te uma grande novidade, que te vai encher de alegria. Já ouviste dizer que para o ano que vem, na Páscoa, cá na aldeia levarão à cena a Paixão de Cristo. Como precisam de um burrinho, pedi aos notáveis o favor de seres tu o escolhido. É em ti que Cristo montará para entrar em Jerusalém. Pensa que glória! Cristo, os apóstolos e tu! Irás à frente, levarás Jesus, e no chão, sob os teus passos, deitarão ramos de murta. E quando morrer, se Deus o quiser deixar entrar no Paraíso, o pobre Yannakos parará à porta, beijará a mão do porteiro e dir-lhe-á: 'Pedro, tenho que te pedir um favor: deixa também o meu burrinho entrar no Paraíso. Se não entrarmos juntos também não entrarei'. 'Vamos, que se cumpra o teu desejo, Yannakos; monta no teu querido Youssoufaki e entrem ambos; Deus gosta dos burrinhos.' E então, Youssoufaki, que felicidade! E para toda a eternidade! Passearás enfim sem alforjes pesados, sem carrego, sem albarda, nesses prados onde crescerá um trevo imortal, que chegará à altura do teu focinho, para que tu, meu Youssoufaki, não tenhas o trabalho de estender o pescoço. Todas as manhãs zurrarás no Céu; acordarás os anjos, que rirão às gargalhadas e subirão para cima de ti; serão leves como penas e tu correrás pelos campos, montado por anjos azuis, vermelhos, roxos... Como um burro que há anos vi em Esmirna: estava carregado de rosas, lírios, lilases e perfumava tudo. Esse dia há-de chegar; chegará, meu Youssoufaki, nada receies. Mas por agora é preciso trabalhar para comer. Portanto, vem, para eu pôr a albarda e os dois alforjes cheios de coisas. Vamos recomeçar a dar a volta pelas aldeias, para vender os carros de linha, as agulhas de barbela, os pentes, o incenso, os algodões e as vidas dos santos. Ajuda-me, meu Youssoufaki, para que os nossos negócios corram bem. Vês, somos companheiros e até sócios. O que ganhamos dividimo-lo honestamente, bem o sabes: o grão para mim e a palha para ti. E se os nossos negócios prosperarem, encomendarei a Panayotis uma albarda que te não fira e uns arreios novos, com borlas vermelhas.
« Vamos, a caminho, ia eu a dizer: faz o teu sinal da Cruz. Mas não és cristão, és um burro. Espreguiça-te, estende as patas, mija, e vem cá para eu te carregar. Já é dia. Vamos, meu Youssoufaki, dêmos graças a Deus!»
Yannakos carregou o animal, pegou no cajado e numa pequena corneta que costumava tocar para anunciar a sua chegada, abriu a porta, benzeu-se, e os dois puseram-se a caminho, alegres e repousados, um atrás do outro, para a primeira volta depois das festas.
A manhã estava radiosa. O sol enchia o céu e inundava a terra, a aldeia, as casas, as lajes do caminho. Tudo ria."
Nikos Kazantzaki, Cristo Recrucificado

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