domingo, 21 de março de 2010

"E há também a besta antiga, o selvagem, o homem hirsuto que mergulha as mãos no festim das entranhas, mastiga e arrota, e cuja fala é gutural, visceral. Também ele continua ali, aninhado dentro de mim. Esta noite banqueteou-se com codornizes, salada e fígado de vitela. Neste momento segura na pata um cálice de fino conhaque antigo. Enquanto bebo, os seus frémitos de prazer percorrem-me a espinha. É verdade que lava as mãos antes do jantar. Mas nem por isso as mãos deixam de ser peludas. Abotoa as calças e o colete, mas essas roupas recobrem sempre os mesmos órgãos. Começa a protestar quando não lhe sirvo as refeições a horas. Grunhe e geme sem cessar, mostrando com gestos idiotas, com ânsia e cobiça, as coisas que deseja. Asseguro-lhe que às vezes me é muito difícil dominá-lo. Este homem coberto de pêlos, simiesco, desempenhou um papel na minha vida. Deu um esplendor mais verde às coisas verdes, colocou a sua tocha de chamas rubras, o denso fumo por detrás de cada folha. Iluminou até o fresco jardim. Brandiu a sua tocha nas ruelas sórdidas onde o rosto das raparigas reluziu numa rubra e embriagadora transparência. Oh, sim, ele ergueu bem alto a sua tocha! Com ela arrastou-me para as danças selvagens ...

Mas agora tudo terminou. Nesta noite, o meu corpo eleva-se como as pedras de uma igreja plena de frescura, com o pavimento recoberto de espessos tapetes, onde sobem murmúrios e há altares envoltos em incenso. Aqui acima, à minha serena consciência, só chegam as ondas de perfume e as músicas maravilhosas, enquanto a pomba perdida se lamenta, os pendões tremulam sobre os túmulos e através das janelas abertas se vêem as árvores agitarem-se na negra atmosfera da meia-noite. Vistas de tão alto até as migalhas de pão me parecem belas! E como são simétricas as espirais formadas pelas cascas de pêra, delicadamente manchadas como os ovos de um pássaro marinho! Até os garfos, colocados uns ao lado dos outros, parecem lúcidos, lógicos e exactos; e as bicas dos pãezinhos que não comemos são vidrados, duros e dourados! Sinto-me cheio de adoração pelas minhas mãos, por este leque de ossos percorridos por misteriosas veias azuis, pela sua espantosa flexibilidade, eficácia e capacidade de se fecharem suavemente ou de esmagarem de súbito qualquer coisa, pela sua infinita sensibilidade.
Esta noite o meu ser sente-se capaz de compreender tudo, de tudo abarcar, trémulo de plenitude, mas ao mesmo tempo límpido de contido, agora que os desejos já o não incitam a que parta e se afaste, agora que a curiosidade já deixou de o tingir com as suas mil cores. O meu ser é profundo, isento de toda a agitação, imune, agora que já morreu o homem a quem chamava «Bernard», o homem que tinha no bolso um caderno onde tomava as suas notas, frases sobre a lua, esboços de um rosto, a aparência das pessoas, o modo como voltavam a cabeça ou lançavam fora os cigarros; na letra B, o pó que se desprende das asas da borboleta, na letra M, as diferentes maneiras de designar a morte. Mas agora gostaria de abrir a porta, a porta envidraçada que constantemente gira nos gonzos. Gostaria de ver entrar uma mulher, ou um jovem em fato de cerimónia e com um pequeno bigode. Gostaria que se sentassem junto de mim. Haverá alguma coisa que possam ensinar-me? Não. Sei tudo o que eles sabem. E se de repente a mulher se levantasse, dir-lhe-ia: «querida, não sinto nenhum desejo de te seguir». O ruído das ondas que se desfazem, esse ruído que me acompanhou toda a vida, que me despertava para ver a maçaneta dourada do armário, já não fez vibrar o que seguro nas mãos.
E assim, carregando aos ombros o mistério das coisas, posso errar pelo mundo como um espião, sem sair deste sítio, sem sequer me levantar desta cadeira. Posso visitar os mais remotos confins das terras desertas onde os selvagens se reúnem em torno da fogueira. O dia nasce; a jovem divindade faz brilhar com o seu olhar as jóias cor de água; o sol alonga os seus raios sobre a casa adormecida. O ritmo das ondas que se desfazem na praia torna-se mais sombrio. A sua espuma reflui empurrada pelo vento. Deslizando pela praia, às águas rodeiam o barco e o cardo marinho. Os pássaros cantam em coro e entre os caules das flores abrem-se túneis verdes. A casa torna-se mais nítida, aqueles que dormem espreguiçam-se e lentamente tudo desperta. A luz inunda o quarto e faz recuar as sombras até um canto onde ficam como pregas imperscrutáveis. O que existirá por detrás das trevas? Alguma coisa? Nada? Não sei."
Virginia Woolf, As Ondas

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