sábado, 27 de março de 2010

As férias de Hanno em Travemuende (2)

"E já haviam passado duas semanas. Hanno dizia de si para si e afirmava a todos que queriam ouvi-lo que ainda estava para vir um lapso de tempo tão grande como as férias de S. Miguel. Mas este consolo era falaz, pois, atingido o auge das férias, a descida para o fim era tão terrivelmente rápida que teria gostado de agarrar-se a cada hora para não a deixar passar, e aspirar mais lentamente o ar marítimo, para não desperdiçar a felicidade.
Mas o tempo decorria irresistível, na alternação de chuva e Sol, de vento da terra e vento do mar, de calor calmo e abafadiço e tempestades barulhentas, que não conseguiam atravessar as águas e pareciam intermináveis. Havia dias em que o nordeste inundava a baía de ondas verde-escuras, abandonando na praia inúmeras algas, mariscos e medusas, e ameaçando os chalés. Então, o mar turvo e tumultuoso estava em toda a parte coberto de espuma. Vagalhões vigorosos irrompiam com calma inexorável e assustadora; inclinavam-se majestosamente, formando uma concavidade esverdinhada, brilhante como metal polido, para afinal, na areia, se esmagarem trovejando, estrondeando, sibilando e marulhando ... Havia outros dias em que o vento oeste repelia o mar, de maneira que o fundo graciosamente ondulado se exibia ao longe e por toda a parte se viam bancos de areia; e chovia a cântaros; o Céu, a Terra e o mar confundiam-se; rajadas de vento atiravam a chuva contra as vidraças, com tal força que a água, escorrendo em riachos, as tornava opacas. Então, Hanno, demorava-se de preferência na sala do hotel, diante do piano. Era um instrumento bastante martelado pelas valsas escocesas das reuniões; não se podiam tocar nele fantasias tão harmoniosas como em casa, no piano de cauda; mas ainda assim, permitia a sua tonalidade branda e cacarejante efeitos muito engraçados ... E vinham outros dias, sonhadores, cerúleos, abafados, sem vento, dias em que as moscas azuis vagueavam, sussurrando, pelo ar, no Campo do Farol. Mudo e espelhado, sem sopro nem movimento, estendia-se o mar. Três dias restavam ainda, dizia Hanno, de si para si, e explicava ao Mundo inteiro que sobrava um espaço de tempo tão grande como as férias de Pentecostes. Mas, se bem que esse cálculo fosse irrefutável, ele próprio já não acreditava nisso; havia muito, apossara-se da sua alma a certeza de que o homem da andaina coçada tivera razão; que, apesar de tudo, as quatro semanas chegavam ao fim e que era preciso continuar onde havia parado, e passaria para tal e tal assunto ...
A carruagem cheia de malas estacou diante do hotel. Chegara o dia. De manhã cedo, Hanno dissera «Adeus» ao mar e à praia; agora repetia-o aos criados que recebiam as gorjetas, ao auditório, aos canteiros de rosas e a toda essa época estival. Então, por entre os cumprimentos do pessoal do hotel, o carro pôs-se em movimento.
Passou pela alameda que dava para a aldeia e ladeou a Primeira Fila ... Hanno recostou a cabeça no canto da carruagem, enquanto Ida Jungmann, que estava sentada na sua frente, ossuda, de olhos claros e cabelos brancos, olhava pela janela. O Céu matutino estava coberto de nuvens alvacentas. O Trave encrespava-se em pequenas ondas, que corriam ligeiras, impulsionadas pelo vento. Às vezes, gotinhas de chuva batiam nas vidraças. Na saída da Primeira Fila; havia gente sentada nos portões das casas, cerzindo redes. Acorreram crianças descalças, mirando a carruagem com olhares curiosos. Elas não precisavam de ir-se embora ...
Quando deixou para trás as últimas casas, Hanno inclinou-se para a frente, a fim de ver, mais uma vez, o farol. Reclinou-se depois e cerrou os olhos. - Voltaremos no ano que vem, Hanninho -disse Ida Jungmann, com voz profunda, alentadora. Mas só faltava essa consolação para imprimir um movimento trémulo ao queixo do pequeno e para fazer brotar as lágrimas por baixo das longas pestanas. .
(...)
Mas a viagem matutina animou-o um pouco, viagem acompanhada pelo pipilar dos pássaros, sobre os trilhos cheios de água da estrada alagada. Recordou-se de Kai e de como ia voltar a vê-lo, do sr. Pfuehl, das lições com ele, do piano de cauda e do harmónio. Além disso, amanhã era domingo, e no primeiro dia de escola, depois de amanhã, não havia perigo. Olha! Tinha ainda um pouco de areia nas botas ... pediria ao velho Grobleben que a deixasse ali dentro para sempre... Quanto a ele, tudo podia recomeçar: as andainas coçadas, os Hagenstroem e o resto. Lembrar-se-ia da praia e do parque balnear, quando esses horrores novamente o assaltassem. Um brevíssimo pensamento torná-lo-ia impávido, imunizando-o contra todos os desgostos: a recordação daquele ruído com que chegavam, no silêncio da noite, chapinhando de encontro ao molhe, as pequenas ondas, vindas de longe, da distância que jazia num sono misterioso...
Apareceu a balsa; apareceu a Avenida de Israelsdorf, o Morro de Jerusalém e o Campo da Fortaleza. O carro alcançou o Portão da Fortaleza, ao lado direito do qual se erguiam as muralhas da prisão onde o primo Weinschenk se achava encarcerado; rolou pela Burgstrasse e o morro de Koberg; transpôs a Breite Strasse e, apertados os travões, desceu pelo declive forte da Rua Fischerrgrube ... E lá estava a fachada vermelha, com a sacada e as cariátides brancas. Quando, do calor do meio-dia que reinava na rua, passaram para o vestíbulo lajeado e fresco, o senador, de caneta na mão, saíu do escritório, para cumprimentá-los ...
Lenta, muito lentamente, com lágrimas clandestinas, o pequeno Johann aprendeu de novo a viver sem o mar, a angustiar-se e a aborrecer-se sobremaneira, a estar sempre alerta contra os Hagenstroem e a consolar-se com Kai, com o sr. Pfuehl e com a música ... ".
Thomas Mann, Os Buddenbrook

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