- Boa viagem e bom vento, capitão Tempestade! - exclamou o agá, que parecia de excelente humor. - Disseram-me que embarcaste e vais partir!
- Icei as velas, agá. O vento sopra de bom lado!
- Onde vais tu, capitão do diabo? - disse o agá, dando uma gargalhada e sentando-se na arca. - Porque queres deixar este mundo? Espera um bocado! Trouxeram-me raki, um verdadeiro mimo; tem um perfume! ... É álcool extraído de amoras pretas. Espera um pouco para bebermos juntos; depois ir-te-ás embora.
- Não! Adeus, já te disse, agá; acabou-se! Levantei a âncora, estou na amurada. Bebe sozinho.
- Onde diabo vais tu? Sabes para onde vais?
- O Diabo me leve se o sei! Vou às cegas.
- O que diz a tua religião a esse respeito, rume?
- Ora, ora! - respondeu o capitão, com um gesto desenvolto. Se eu acreditar na minha religião vou directamente para o Inferno.
O agá riu e respondeu:
- E quanto a mim, se acreditar na minha, irei direitinho para o Paraíso, um paraíso cheio de pilafe, de mulheres e de Youssoufakis! Mas olha lá, maroto de capitão, dar-se-á o caso de as nossas religiões estarem a troçar de nós? Não achas que tenho razão, meu Youssoufaaki? O mundo é um sonho e o raki é que é a vida. Beber e embriagarmo-nos, isso é que é a vida! Mas o catavento que o nosso espírito é move-se com todos os ventos e tu fazes de rume e eu de agá turco ... Deixemos isso, capitão do diabo! Não falemos mais em tal! Não chegar a qualquer conclusão põe-me mal disposto!
Voltou-se para o rapazinho:
- Levanta-te, meu Youssoufaki; vi uma garrafa grande ali no canto, levanta-te e dá-nos de beber!
A velha Madalénia entrou e curvou-se para dizer ao ouvido do capitão:
- O pope está a chegar com o Santo Sacramento para te dar a comunhão. Não bebas raki.
- Que pope, velha pitorra? Cala-te! Pega na garrafa e dá-nos de beber!
A velhota resmungou; a mão tremia-lhe; encheu os copos. O agá levantou-se, aproximou-se da cama e tocou no copo do amigo.
- Para que a tua viagem seja boa, capitão!
- E a tua também.
Riram com vontade os dois.
- Se o nosso Maomet e o vosso Cristo - disse o agá limpando o bigode - tivessem bebido juntos e feito saúdes um ao outro, como nós fazemos, teriam ficado amigos íntimos; não teriam querido arrancar os olhos um ao outro ... Mas não bebiam e mergulharam o mundo num mar de sangue ... Ora vê lá tu: como é que nos tornámos bons amigos, meu patife? Não somos felizes? Não somos felizes?
- O pope vem dar-me a comunhão, agá - disse o capitão, que começava a sentir a cabeça à roda e apetecia-lhe fechar os olhos. Adeus!
- Mas espera, que diabo! Onde vais? Não tenhas tanta pressa!
Trouxe-te o Youssoufaki para que te cante o amané que preferes. Ao menos não partas sem uma canção. Vem, meu Youssoufaki; canta o amané, com a minha bênção ...
Como era seu hábito o rapazito tirou da boca a pastilha de goma que mastigava, colou-a num dos joelhos e, com ar langoroso, pousou a face na palma da mão direita. Ia a abrir a boca para começar a canção quando o agá estendeu a mão.
- Espera, meu Youssoufaki. A corneta deve tocar primeiro! E ordenou, voltando-se para o moço de estrebaria.
- Abre a porta e, com ar marcial, põe-te na soleira.
O homem abriu a porta, levou a corneta à boca e pôs-se a tocar a carregar.
- Basta! - exclamou o agá. - Vamos, Youssoufaki, o nosso amané!
A voz clara e apaixonada soou; o capitão arrebitou a orelha e o peito encheu-se-lhe de ternura e de tristeza. « Dunya tabir, ruya tabir! ... O mundo e o sonho são a mesma coisa, aman, aman!»
Nunca o capitão sentira e compreendera tão profundamente a que ponto era verdade o mundo e o sonho serem a mesma coisa ... Com certeza adormecera e durante o sonho sonhara que era capitão, que tocara nos portos do mar Branco e do mar Negro, que fora à guerra de 97, que era negro e cristão e que naquele momento ia morrer ... Mas afinal não morria, estava a acordar, o sonho findara, estava a despontar o dia ... Estendeu a mão com firmeza.
- Agradeço-te, meu caro agá; foste o único que compreendeu os meus desgostos. Adeus também, Youssoufaki; que a tua linda boquinha nunca se transtorne; que na terra se torne um rubi!
O agá comoveu-se; limpou os olhos.
- Adeus, patife de capitão! Boa viagem! Abaixou-se e beijou-o; estavam ambos a chorar.
- Caramba, eu também não sabia que gostava assim de ti, agá! - disse o moribundo em voz fraca. - Adeus!
No caminho, o senhor voltou-se para o moço:
- Toca outra vez a carregar, para que o capitão ouça; isso dar-lhe-á coragem ... E também para a gente da aldeia ouvir e se juntar para o ir enterrar. Ruiu um pilar da aldeia."
Nikos Kazantzaki, Cristo Recrucificado
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