quarta-feira, 17 de março de 2010

"- Fiquemos aqui um momento antes de partir, disse Berrnard. Passeemos pela margem do rio numa solidão quase completa. As pessoas já regressaram a casa. É tranquilizante ver como se acendem as luzes dos quartos de dormir nas casas dos pequenos comerciantes, do outro lado do rio. Acendem-se umas a seguir às outras. Quanto terão ganho hoje? O suficiente para pagarem a renda, a electricidade, a comida e as roupas para as crianças. Apenas o suficiente. Como a vida parece suportável ao vermos as luzes que se acendem nos quartos dos pequenos comerciantes! No sábado terão apenas o suficiente para os bilhetes do cinema. Talvez antes de se deitarem desçam até ao minúsculo jardim e olhem o enorme coelho deitado na sua casota de madeira. É o coelho que vão comer no jantar de domingo. Depois apagam as luzes. E dormem. E, para milhares de indivíduos o sono é apenas calor e silêncio e o momentâneo abandono à fantasia de um sonho. «Enviei a minha carta para o jornal de domingo», pensa o vendedor de legumes. «E se ganhar quinhentas libras nas apostas de futebol? Além disso vamos matar o coelho. A vida é agradável. A vida é boa. Mandei a carta. Vamos matar o coelho.» E adormece.
- E isto continua. Ouçam. Ouço um ruído que parece o choque de vagões que estão a ser atrelados numa estação de caminho-de-ferro. É assim o feliz encadeamento dos acontecimentos na nossa vida. Devo, devo, devo. Devo partir, devo deitar-me, devo acordar, devo levantar-me - palavra piedosa e solene que pretendemos desprezar, mas que apertamos contra o coração, já que sem ela seríamos incompletos. Como respeitamos este som, semelhante ao choque dos vagões que estão a ser atrelados numa estação de caminho-de-ferro!
Agora ouço um coro ao longe, vindo do lado do rio. São as canções dos meninos convencidos que em grandes carros regressam de um dia passado na ponte de um vapor repleto de gente. Cantam, como cantavam outrora no pátio, em noites de Inverno, ou com as janelas abertas no Verão, bebendo, quebrando os móveis, com pequenos barretes às riscas e voltando todos a cabeça ao mesmo tempo quando a carruagem dobrava a esquina. E eu desejava ser como eles.
Estes cantos, os remoinhos da água e o murmúrio quase imperceptível da brisa, arrasta-nos suavemente. Pedaços do nosso ser desprendem-se de nós. Atenção! Qualquer coisa de muito importante caiu. Estou a perder o domínio do meu corpo. Vou adormecer. Mas devemos partir, devemos apanhar o comboio, devemos ir para a estação, devemos, devemos, devemos. Somos apenas corpos correndo uns ao lado dos outros. Só existo nas plantas dos pés e nos fatigados músculos das coxas. Tenho a impressão de caminhar há horas. Mas onde? Não consigo lembrar-me. Sou como um tronco deslizando suavemente por uma catarata. Não sou juiz. Não tenho a obrigação de dar opiniões. Sob a luz cinzenta, as casas e as árvores tornam-se semelhantes. Aquilo é um poste? E isto, é uma mulher caminhando? Eis a estação. Se o comboio me despedaçasse, o meu corpo juntar-se-ia de novo do outro lado dos carris, porque sou uno e indivisível. Mas o mais curioso é que ainda seguro na mão metade do meu bilhete, a metade de regresso a Waterloo, mesmo agora, mesmo quando estou a dormir."
Virginia Woolf, As Ondas

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