sábado, 27 de março de 2010

"Gosto muito de ribeiros, como, aliás, de tudo que seja água, desde as águas do oceano às do charco mais coberto de juncos. Se porventura, em plena montanha, num dia de Verão, me chega ao ouvido um chapinhar ou sussurrar longínquo, nunca deixo de procurar a origem desses líquidos sons, por mais longe que esteja. Quero conhecê-la e olhar de frente essa sociável filha dos montes, onde quer que se esconda. Que belas as torrentes que tombam com suave trovejar entre terrenos verdejantes e sobre terraços de pedra, formando rochosas piscinas, para se pulverizarem em branca espuma e caírem de novo perpendicularmente no próximo desnível! Mas também me agradam os riachos das planícies, embora tão pouco profundos que quase não cobrem os seixos escorregadios e brilhantes como prata dos leitos por onde fluem, ou tão fundos como pequenos rios que salgueiros guardam, todos debruçados para eles, correndo rápidos e poderosos por entre margens sossegadas. Quem haverá aí que não goste de seguir o murmúrio das águas correntes? A atracção que estas exercem sobre o homem normal é extraordinária. O homem, em verdade, é filho das águas. Nove décimos do nosso corpo são água e numa certa fase do seu desenvolvimento o feto é provido de guelras. Pela minha parte confesso que a vista da água, seja sob que estado for, representa para mim a forma mais viva e imediata de um natural contentamento. Sim, atrevo-me a dizer, mesmo, que só a contemplação da água me leva a esquecer-me de mim próprio e a sentir a minha própria limitada individualidade fundir-se com o universo. O mar, agitando-se vagarosamente ou rolando com as suas ondas fragorosas, põe-me num estado de um tão profundo cismar orgânico, de uma tamanha ausência de mim mesmo, que me perco no tempo. Unido a um tal companheiro, não sei o que é tédio, as horas passam como se fossem minutos. Mas também sou capaz de me debruçar do parapeito de uma ponte sobre um riacho e de ficar a contemplar as águas, com os seus redemoinhos e o seu curso sossegado, tanto tempo que me esqueço de tudo, perdido por completo o sentido desse outro curso dentro de mim, do fluir rápido do tempo. Tal amor à água e o que ela representa para mim podem avaliar-se pelo facto de este pedaço de terra em que vivo estar cercado dos dois lados pelas águas.
Mas o meu riozinho aqui é o mais simples de todos os rios, não tem características invulgares nem nada que o assinale em particular; é um rio como qualquer outro. Transparente como vidro, sem qualquer artifício, não se lembra sequer de parecer mais fundo, tomando-se mais turvo.
É escorregadio e cândido e não finge que tem latas velhas ou restos de sapato de fitas no seu leito. No entanto é fundo que basta para servir de morada a peixinhos vivos, prateados e lindos que fogem aos ziguezagues mal nos aproximamos. Nalguns pontos alarga e forma pegos, com salgueiros nas margens. Há um salgueiro para que eu gosto de olhar sempre que passo por ele. Fica na ribanceira, um pouco afastado do rio, embora um dos ramos lhe penda em cima, quase a tocar-lhe. Acontece mesmo que em certas ocasiões mergulha as extremidades prateadas nas águas correntes. E assim permanece gozando o prazer de tal contacto.
Muito agradável é passear por aqui quando sopram as ardentes brisas do Estio. Se o tempo está quente, o Bashan desce até ao rio para refrescar a barriga, a barriga apenas, pois ele, por sua livre vontade, nunca molharia mais do que a barriga. Ali fica, com as orelhas atiradas para trás e um olhar virtuoso, deixando as águas correr à sua roda. Depois volta outra vez para junto de mim, para sacudir-se, certo como está de que apenas o pode fazer na minha vizinhança - e fá-lo tão completamente que eu apanho literalmente um banho. Não é justo que o afaste à bengalada e aos gritos. Tudo o que lhe parece natural, certo e necessário deve fazê-lo."
Thomas Mann, O Cão e o Dono

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