sábado, 27 de março de 2010

As férias de Hanno em Travemuende (1)

"Havia anos que os Buddenbrook se tinham desabituado das extensas viagens estivais que outrora costumavam fazer. Mesmo na Primavera passada, quando a senadora correspondera ao desejo de visitar o seu velho pai, em Amsterdam, para, após tanto tempo, executar outra vez alguns duos de violino, o marido consentira de modo bastante lacónico. Mas, antes de tudo, por causa da saúde de Hanno, observava-se a regra de que Gerda, o pequeno Johann e Ida Jungmann se deslocassem, anualmente, durante as férias de Verão, para o veraneio em Travemuende ...
Férias de Verão na praia! Alguém, pelo Mundo fora, compreenderia a felicidade que isto significava? Depois da lenta e aflitiva monotonia de inúmeros dias escolares, quatro semanas de retiro pacato, sem mágoas, cheias do aroma de algas e do marulhar da ressaca branda... Quatro semanas, um espaço de tempo que, no início, era impossível medir, abranger com a vista, e em cujo fim não se podia acreditar; parecia até blasfémia pouco delicada falar de um fim. Jamais o pequeno Johann compreendeu como este ou aquele professor ousava, no fim das aulas, pronunciar locuções como, por exemplo: «Neste ponto continuaremos depois das férias e então passaremos para tal e tal assunto ... » Depois das férias! Tinha-se mesmo a impressão de que esse homem incrível, na sua velha andaina, se alegrava com essa ideia! Depois das férias! Seria possível conceber este pensamento? Tudo quanto jazia para além dessas quatro semanas, estava tão distante, tão maravilhosamente escondido numa névoa cinzenta!
No dia anterior, a inspecção do boletim passara-se mais ou menos bem. A viagem fizera-se na carruagem de aluguer, muito carregada. E agora, na primeira manhã, que despertar, naquela casinha suíça, uma das duas que, reunidas pela estreita construção central, formavam uma linha recta com a confeitaria e o edifício principal do balneário! Sobressaltou-o uma indeterminada sensação de felicidade que subia pelo corpo e lhe contraía o coração ... Abriu os olhos e abarcou com um olhar ávido e encantado a mobília antiquada do pequeno quarto muito limpo ... Um segundo de perturbação sonolenta e voluptuosa -e então compreendeu que estava em Travemuende, em Travemuende por quatro vastas semanas! Não se mexeu; permaneceu quieto, deitado de costas, na estreita cama de madeira amarela, cujo lençol era muito fino e macio de tanta velhice; de vez em quando, cerrava novamente os olhos e sentia como, nas respirações profundas e vagarosas, o peito lhe tremia de felicidade e inquietude.
O quarto estava iluminado pela luz amarelecida do dia que já penetrava pela cortina listrada. Em redor reinava silêncio. Ida Jungmann e a mãe dormiam ainda. Nada se ouvia, senão o ruído regular e pacato com que, lá em baixo, o criado do hotel limpava com o ancinho o saibro do jardim, bem como o zunir de uma mosca que, entre a cortina e a janela, tenazmente assaltava a vidraça; via-se a sombra que, em compridas linhas de ziguezague, errava pelo pano listrado... Calma! O ruído solitário do ancinho e o zunir monótono! E essa paz suavemente animada inspirava ao pequeno Johann o sentimento delicioso de retiro. Amava mais do que tudo esse balneário distinto, tranquilo e bem cuidado. Não: louvado seja Deus! Nunca chegariam aqui aquelas velhas andainas que, na Terra, representavam a Gramática e a regra de. três! Aqui, não, porque a vida era bastante dispendiosa em Travemuende ...
Um acesso de alegria fez que saísse da cama, de um pulo, e corresse descalço para a janela. Subiu a cortina. Desprendendo um gancho pintado de branco, abriu um batente. Seguiu com os olhos a mosca que se sumia, voejando por cima dos atalhos saibrosos e os canteiros de rosas do jardim balnear. O auditório de música, vazio e silencioso, no meio de um semicírculo de buxos, erguia-se em frente aos edifícios do hotel. O Campo do Farol, assim denominado por causa da torre que se elevava à direita, dilatava-se sob o Céu coberto de nuvens alvacentas. Ao longe, a relva curta, interrompida por manchas de terra nua, confundia-se com duras amófilas que se perdiam na areia, lá onde se enxergavam as filas dos pequenos chalés particulares e das cadeiras de praia, alinhadas diante do mar. Ele estava ali, O mar, sossegado na luz matutina, estendendo-se em tiras verde-garrafa e azuis, lisas e crespas. Por entre as balizas vermelhas que marcavam o canal navegável, surgiu um vapor, vindo de Copenhague, sem que fosse preciso saber se ele se chamava Náiade ou Friederike Oeverdieck. E, de novo, Hanno Buddenbrook, com beatitude tácita, aspirou profundamente o hálito aromático que o mar lhe enviava; acenou-lhe ternamente com os olhos, numa saudação muda, grata e carinhosa.
Então começou o dia, o primeiro desses míseros vinte e oito dias, que no princípio lhe tinham parecido a bem-aventurança eterna, e que, passados os primeiros, se escoavam com rapidez desesperadora...".
Thomas Mann, Os Buddenbrook

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