sábado, 6 de março de 2010

"O sol ergueu-se. Raios verdes e amarelos tombaram sobre a praia dourando os flancos de barco carcomido e arrancando reflexos azul de aço aos cardos marinhos de folhas couraçadas. A luz quase trespassa as frágeis ondas que correm em leque pela praia. A jovem que ao sacudir a cabeça fizera dançar o topázio, a água-marinha, todas as jóias cor de água com cintilações de fogo, afastou os cabelos da fronte e de olhos muito abertos traçou um caminho a direito sobre as ondas. O seu brilho fremente escureceu; as ondas confundiram-se; os seus verdes abismos aprofundaram-se e escureceram, atravessados talvez por cardumes de peixes errantes. Ao recuarem depois de se desfazerem na areia, as ondas deixam na praia uma linha escura de gravetos e pedaços de cortiça, ciscos de palha e pequenos ramos, como se uma frágil chalupa tivesse naufragado e rompido o casco e o seu marinheiro houvesse nadado para a praia e escalado a falésia deixando a sua leve carga ser arrastada pela corrente.

No jardim, os pássaros que na madrugada cantaram ao acaso, espasmodicamente na penumbra de uma árvore, de um silvado, cantavam agora em coro, em sons nítidos e estridentes, ora juntos como se estivessem conscientes da presença dos seus companheiros, ora solitários, como se se dirigissem ao pálido azul do céu. Voaram todos ao mesmo tempo quando o gato preto se movimentou ao longo dos arbustos e a cozinheira os assustou lançando mais cinzas para o monte. Havia medo no seu canto e suspeita de dor e também a alegria que tem de ser arrancada a cada instante. Depois cantaram todos ao desafio no ar límpido da manhã, voando muito por sobre os olmos, perseguindo-se, escapando-se, bicando-se, volteando no espaço. Em seguida, cansados de se perseguirem, cansados de voar, desceram graciosamente, baixaram delicadamente, pousaram silenciosos nas árvores, nos muros, com os olhos brilhantes à espreita, as cabeças voltando-se para aqui e para acolá, atentos, despertos, intensamente conscientes de qualquer coisa, de um objecto particular.

Talvez fosse uma casca de caracol erguida na relva como uma catedral cinzenta, um edifício incendiado marcado por círculos escuros na sombra verde da relva. Ou talvez vissem o esplendor das flores formando um clarão vermelha sobre os canteiros, enquanto os espaços abertos entre os caules formavam uma série de túneis avermelhados e sombrios. Ou então fitavam as pequenas folhas brilhantes da macieira, dançando de modo contido, cintilando hirtas por entre as flores salpicadas de cor-de-rosa. Ou então viam uma gota de chuva cair sobre a sebe e aí ficar suspensa, com a imagem de uma casa inteira contida dentro dela e olmos tão altos como torres. Ou então contemplavam o sol de frente e os seus olhos tornavam-se grãos de ouro.

De olhos voltados para um e outro lado, desciam mais para baixo entre os ramos, nas sombrias áleas desse universo onde as folhas apodrecem e as flores caem. Depois, um deles desceu como uma flecha, num voo certeiro e bicou o corpo mole e monstruoso de um verme indefeso, bicou-o uma e outra vez e deixou-o a apodrecer. Lá em baixo, entre as raízes onde as flores sucumbem, há odores de morte e gotas no flanco intumescido das coisas inchadas. A pele dos frutos apodrecidos estala deixando escapar uma substância demasiado espessa para escorrer. As lesmas deixam atrás de si secreções amarelas e às vezes, aqui e ali, um corpo informe, com uma cabeça em cada extremidade, oscila lentamente de um lado para o outro. Os pássaros de olhos de ouro, saltando entre as folhas, observam ironicamente essa húmida podridão. De vez em quando mergulham selvaticamente a ponta do bico na mistura pegajosa."
Virginia Woolf, As Ondas

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