"- Oh, vida como te receei, disse Rhoda, e como odiei os seres humanos! Como sofri com os vossos acenos e as vossas palavras que interrompiam os meus pensamentos, como me pareceram horríveis em Oxford Street e ignóbeis quando se sentavam no metro uns diante dos outros, olhando-se! Agora, enquanto escalo esta montanha no cimo da qual verei a África, ainda guardo na memória os vossos rostos e a recordação de pacotes embrulhados em papel pardo. Corromperam-me e mancharam-me. E como cheiravam mal quando faziam filas na rua para comprar bilhetes! Todos estavam vestidos com indefinidos tons de cinza e castanho, sem uma só pluma azul no chapéu. Ninguém tinha a coragem de ser qualquer coisa de definido. E todos os dias a vida nos exigia a corrupção mais completa da alma, mil mentiras, mil reverências, disputas e o mais completo servilismo! Prenderam-me a um ponto do espaço, a uma hora, a uma cadeira e sentaram-se diante de mim. Arrancaram os espaços brancos que estavam entre as horas, fizeram delas migalhas e lançaram-nos com as mãos sujas, para o caixote do lixo. E,no entanto, esses espaços eram a minha vida. E apesar disso cedi,colocando a mão diante da boca para esconder os risos de troça e os bocejos. Recusei-me a sair para a rua e quebrei uma garrafa no chão para manifestar a minha fúria. Tremendo de ardor, fiz o possível por não mostrar a minha surpresa. Fazia o que os outros faziam. Se Susan e Jinny usavam as meias de um determinado modo eu também usava. A vida era tão terrível que entrepunha entre mim e ela mil biombos. Olhei a vida através das pétalas das rosas e das folhas de videira. Olhei Oxford Street, Picadi11y e todas as ruas de Londres, com as cintilações do meu espírito, através das pétalas das rosas e as folhas de videira. Havia malas nos corredores quando as aulas terminavam. Aproximava-me delas furtivamente para ler as etiquetas e imaginar nomes e rostos. Harregate ou talvez Edimburg resplandeciam por uma rapariga, cujo nome esqueci, ter pisado as suas ruas. Mas só o nome das coisas me atraía. Deixei Louis. Tenho medo dos abraços. Tentei dissimular o aço da lâmina com peles e lãs. Implorei ao dia que se transformasse em noite. Desejei ver o armário vacilar, sentir a cama amaciar-se sob o meu peso e flutuar, ver as árvores e os rostos alterados pela distância e uma mancha verde nas terras pantanosas onde duas pessoas desesperadas se dissessem adeus. Semeei palavras como o camponês semeia o grão no campo lavrado. Desejei dilatar a noite para a encher de sonhos.~
...........................................................................................................................................................
Agora escalo esta montanha em terras de Espanha. Vou imaginar que o dorso desta mula é o meu leito e que nele me deito, agonizante. Só um ténue farrapo me separa das profundezas sem fim. Sob a pressão do meu corpo desaparecem as saliências do colchão. Avançamos aos tropeções. O meu caminho foi sempre a subir em direcção a alguma árvore solitária erguida junto de um tanque, bem no cimo de tudo. Naveguei nas águas da beleza à hora do crepúsculo, quando as colinas se fecham como asas dobradas de pássaros. Ás vezes colho um cravo vermelho ou um punhado de feno perdido. Deitei-me sozinha sobre a erva, revolvi entre os dedos um velho osso abandonado e pensei: - quando o vento soprar sobre estas colinas talvez só encontre um punhado de pó.
A mula tropeça avançando sempre. O cimo da colina ergue-se, diante de mim, envolto em neblina; mas quando lá chegar verei a África. Agora a cama cede sob o meu corpo. Atravesso os lençóis queimados, repletos de orifícios amarelos. A bondosa mulher com rosto de cavalo branco que está junto da cama faz um gesto de despedida e volta-se disposta a partir. Quem me acompanhará? Flores, apenas flores, os bons-dias e os espinheiros da cor do luar. Com elas farei um ramo e uma grinalda ... mas a quem a oferecer? Agora aventuramo-nos sobre os precipícios. Lá em baixo brilham as luzes dos barcos de pesca. Os rochedos desapareceram. Inumeráveis ondas cinzentas desdobram-se aos nossos pés. Em nada toco. Não vejo nada. Podemos cair e pousar sobre as ondas. O mar ressoará como um tambor nos meus ouvidos. As pétalas brancas ficarão obscurecidas pelas águas do mar. Flutuarão um instante antes de se afundarem. Uma onda há-de arrastar-me; outra vai erguer-me no seu agitado dorso. Depois tudo desabará como uma gigantesca catarata em que me dissolvo.
E, no entanto, esta árvore tem ramos espinhosos e o telhado de uma cabana desenha uma linha nítida contra o céu. Estas coisas redondas pintadas de vermelho e amarelo são rostos. Pouso um pé no chão, dou um passo cauteloso e com a palma da mão bato na dura porta de uma pousada espanhola."
Virginia Woolf, As Ondas
Sem comentários:
Enviar um comentário