- Na montanha há muitas grutas, meu pai - disse Yannakos. - Ouvi dizer que nos tempos antigos os primeiros cristãos viveram lá. Numa delas ainda se distinguem, pintados nos rochedos, a Virgem e Cristo crucificado. Devia ser a igreja deles.
- Também há água - acrescentou Costantis. - Sai de um rochedo durante o Verão e o Inverno. Quando subirem um bocado ouvirão o seu murmúrio. E também há perdizes. E no pico mais alto está a capela do profeta Elias.
- Esta noite poderão descansar nas grutas - sugeriu Manólios. A montanha está coberta de pequenos bosques, de arbustos selvagens. Acenderão fogueiras e poderão preparar os alimentos. E se se sentirem bem poderão instalar-se lá durante algum tempo, para poderem respirar um bocado. O profeta Elias, patrono da montanha, ama os oprimidos.
O padre Photis ergueu os olhos, fitou-os no monte e ficou um bocado a pensar. Os quatro companheiros olhavam-no comovidos; sobre a sua fisionomia de asceta os pensamentos passavam como vagas; o seu olhar mergulhava num abismo secreto e silencioso. De repente fez o sinal da Cruz. Tomara uma decisão.
- Deus fala pela tua boca, Manólios. Os homens expulsam-no de toda a parte; partilhemos as grutas com os animais. Sejam dadas graças a Deus.
Ergueu o Evangelho e abençoou a montanha murmurando: «Criação do Todo-Poderoso, rochas enormes e tu, água, que ignoras o sono e brotas dos rochedos para matar a sede às arvéolas e aos falcões, e tu, fogo, que dormes sob as cascas das árvores dos bosques e aguardas o homem para acordares e te pores ao seu serviço, nós saudamo-vos. Somos homens perseguidos pelos homens. Arvéolas e falcões, seres selvagens e condoídos, fazei-nos bom acolhimento! Trazemos os ossos dos nossos pais e as ferramentas do trabalho e das sementeiras dos homens. Em nome do Céu! Possam essas sementeiras crescer nesse deserto de pedras e o nosso povo enraizar-se ali.»
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Os primeiros raios do Sol iluminaram o pico da Sarakina e tingiram de cor-de-rosa a capela de Santo Elias. Nas encostas as perdizes começaram a cantar. Pouco a pouco toda a montanha se animou. Aqui e ali surgiram algumas alfarrobeiras de tronco retorcido, pereiras selvagens com a casca cheia de espinhos, carvalhos verdes roídos pelo vento.
Em tempo deviam ter ali vivido homens. Viam-se ainda as ruínas de um muro, bocados de bilhas partidas, árvores de fruto deixadas ao abandono e que se haviam tomado selvagens. As ruas tinham desaparecido invadidas pelas pedras e ervas bravas; as paredes das casas, construídas de tijolos crus, haviam regressado ao estado de terra; as árvores, em tempo tratadas, tinham-se coberto de espinhos. Os lobos, as raposas, as lebres, fugidos dos homens, tinham voltado a apossar-se dos seus domínios. Então terra, árvores e animais começaram a respirar à vontade, libertos das peias impostas pelo efémero bípede que durante uns instantes transtornara a ordem eterna das coisas.
E eis que aquele animal inquieto regressava. Os bichos selvagens puseram-se à espreita, escondidos atrás dos rochedos. Logo que o sol apareceu, as pessoas saíram das grutas. Havia homens, mulheres e crianças; espalharam-se à procura das concavidades onde a água das nascentes se mantinha nos buracos das rochas, juntaram pedras e acenderam fogueiras... Levantando-se na ponta dos pés, inspeccionavam a planície onde se estendia a rica aldeia de Lycovrissi - as colinas em círculo que a rodeavam, cobertas de oliveiras, figueiras e vinhas-, mais ao longe ainda a montanha com os seus tons verde-tenro, os seus contornos doces onde pastavam rebanhos, mais para além, no horizonte, os altos montes lilases que se erguiam para o céu." Nikos Kazantzaki, Cristo Recrucificado
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