Falava com aquele eu que estivera comigo em numerosas e terríveis aventuras, o amigo incondicional que permanece sentado diante do fogo quando já todos se foram deitar, remexendo as cinzas com um atiçador. Falava ao homem que foi construído, misteriosamente construído em sucessivas camadas, num bosque de faias, junto de um salgueiro na margem do rio ou debruçado num parapeito de Hampton Court, o homem que se tinha recolhido em si nos momentos críticos e batera com a colher na mesa dizendo: «Não consentirei.»
Este eu não me deu qualquer resposta no momento em que, apoiado na cancela, olhava os campos que desenrolavam diante de mim as suas ondas de cor. Não levantou qualquer objecção. Nem sequer uma frase tentou dizer. E a sua mão não se crispou na forma de um punho. Esperei, escutei. Nada aconteceu, nada. Foi então que gritei assaltado pelo sentimento de uma completa solidão. «Agora sei que nada existe. Nenhuma barbatana quebra a solidão deste mar imenso. A vida destruiu-me. Quando falo nenhum eco me responde transformando as minhas palavras. Esta morte é ainda pior que a morte dos meus amigos, que a morte da minha juventude.»
Murchou a paisagem que me rodeia. Foi como num eclipse, quando o sol desaparece e a terra, apesar de coberta pela sua mais bela folhagem de Verão, se torna murcha, frágil e irreal. Vi também os grupos que outrora formávamos, dançarem na poeira de uma estrada sinuosa, reunindo-se, comendo juntos e encontrando-se ora num ora noutro quarto. Vi a minha infatigável actividade, como corria de um para outro lado, como tinha viajado e regressado, me unira a este ou àquele grupo, umas vezes beijado outras rejeitado, perseguindo sempre algum extraordinário projecto, com o nariz colado ao solo, como um cão seguindo um rasto. Às vezes, erguendo a cabeça, soltava um grito de espanto ou desespero, e depois seguia de novo o rasto. Que desordem, que confusão. Nascimento e morte, suculência e doçura, esforço e angústia, e eu sempre correndo de um lado para o outro. Mas agora tudo terminara. Já não tinha qualquer apetite para saciar, nem dardos com que atingir os outros, nem dentes afiados, nem mãos para agarrar, nem desejo de sentir as peras e as uvas e o sol reflectindo-se no muro do pomar.
Os bosques tinham-se desvanecido e a terra estava reduzida a um deserto de sombras. Nenhum ruído perturbava o silêncio da paisagem invernal. Nenhum galo cantava, nenhum fumo se elevava nos ares, nenhum comboio passava. Era apenas um homem sem alma, um corpo pesado apoiado numa cancela. Um homem morto. Com a imparcialidade do desespero, na mais completa ausência de ilusões, olhei o pó que dançava. A minha vida, as vidas dos meus amigos e as presenças fabulosas dos jardineiros com vassouras, de senhoras sentadas a escrever, o salgueiro na margem do rio - nuvens e fantasmas, também eles feitos de pó, de um pó que mudava de forma, como as nuvens que aumentam e diminuem se revestem de vermelho e ouro e perdem os seus cumes, versáteis e vãos. Eu, segurando o caderno e anotando frases, limitei-me a registar as mudanças. Fui uma sombra ocupada a registar sombras. Mas como prosseguir agora, sem um eu, sem peso e sem ilusões, num mundo sem ilusões e sem peso?
O peso do meu desespero abriu a cancela em que me apoiava e lançou-me, a mim, homem já entrado nos anos, homem de cabelos grisalhos, no campo vazio, no campo sem cor. Já se não ouviam ecos nem viam fantasmas. As lutas tinham terminado. Agora só havia o interminável caminhar sem sombra, que não deixava qualquer marca na terra morta. Se ao menos ali houvessem carneiros mastigando, movendo uma pata após outra, ou uma ave, ou um homem cavando a terra ou uma sarça para me fazer tropeçar, ou uma vala repleta de folhas húmidas onde cair - mas não, a melancólica vereda estendia-se pela planície, conduzia apenas a novos recantos de Inverno e palidez e por todo o lado se avistava a mesma paisagem indiferente e monótona.
Como regressa a luz depois de um eclipse do sol? Milagrosamente. Com timidez. Em raios ténues. A luz mantém-se suspensa sobre a terra como uma caixa de cristal. É como um frágil anel que o mais pequeno choque pode estilhaçar. Uma cintilação surge, depressa substituída por uma corrente de sombra. Depois um vapor desprende-se da terra como se ela tivesse começado a respirar. Em seguida, tem-se a impressão que nesta atmosfera morta alguém caminha segurando uma lanterna verde. Depois surge um clarão fantasmal. Uma pulsação azul e verde atravessa o bosque e os campos impregnam-se lentamente de vermelho, dourado e castanho. Subitamente um rio apodera-se de um reflexo azul. A terra bebe a cor, tal como uma esponja absorve a água. Adquire peso, arredonda-se, pende, recupera o equilíbrio e oscila aos nossos pés.
Foi assim que a paisagem regressou; foi deste modo que vi os campos moverem-se a meus pés em ondas coloridas. Mas agora havia uma diferença. Eu via sem ser visto. Caminhava sem sombra; chegava sem ser anunciado. Do meu corpo tombara o velho manto, a resposta, a mão vazia que golpeava para devolver os sons. Subtil como um fantasma, sem deixar quaisquer marcas nos sítios por onde passava, reduzido a um olhar que contempla, caminhei solitário por um mundo novo, nunca antes percorrido, tocando ao de leve em flores novas, semelhante a uma criança que só consegue pronunciar monossílabos; sem a protecção das frases, eu que construí tantas; sem companhia, eu que sempre tive alguém com quem compartilhar o lar vazio, ou o armário com a sua maçaneta dourada.
Mas como descrever um mundo de que o eu está ausente?
As palavras faltam. O azul, o vermelho, até essas palavras desorientam, tornam a atmosfera mais densa, em vez de deixarem que a luz a atravesse. Como dizer qualquer coisa, como descrever qualquer coisa com palavras articuladas? Quanto muito pode dizer-se que esta paisagem se desvanece, se transforma pouco a pouco, se banaliza até no decurso deste breve passeio. A cegueira regressa quando nos movemos e uma folha repete outra folha. A beleza regressa quando olhamos, arrastando consigo as suas frases fantasmais. Respiramos, inspirando e expirando um sopro substancial; lá em baixo, no vale, o comboio atravessa os campos com a sua cabeleira de fumo.
Mas durante um instante fiquei sentado na erva acima do mar e do rumor dos bosques; vi a casa, a casa e as ondas que se desfaziam na praia. A velha ama que voltava as páginas de um livro ilustrado, detivera o seu gesto, dizendo-me: «olhe, isto é a verdade»."
Virginia Woolf, As Ondas
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