sábado, 6 de março de 2010

"- Vou deslizar por detrás deles, disse Rhoda, como se tivesse visto alguém que conheço. Mas não conheço ninguém. Vou entreabrir a cortina e olhar a lua. Sopros de esquecimento acalmam a minha agitação. A porta abre-se. O tigre salta. O terror entra. Terror e mais terror, perseguindo-me. Visitarei às escondidas os tesouros escondidos na minha solidão. Do outro lado do mundo há colunas de mármore reflectidas em lagos. A andorinha roça com as asas a superfície de lagos sombrios. Mas aqui a porta abre-se e entra gente. Vêm na minha direcção. Sorriem levemente para esconder a crueldade e a indiferença e apoderam-se de mim. A andorinha roça a superfície do lago e a lua solitária percorre mares azuis. Devo estender-lhe a mão; responder. Mas que resposta dar? Retrocedo com violência, sentindo escaldar o corpo desajeitado e exposto à indiferença e ao desdém dos homens, eu que imagino colunas de mármore e lagos onde as andorinhas molham as asas do outro lado do mundo.
A noite adensou-se um pouco mais sobre as chaminés. Olhando sobre o ombro deste homem, vejo através da janela um gato tranquilo, que nenhuma luz ofusca e nenhuma seda tolhe. Um gato livre de parar, espreguiçar-se e recomeçar a andar. Odeio os pormenores da vida individual. Mas aqui sou obrigada a escutar. Um enorme peso me oprime. Não posso mover-me sem carregar o peso de séculos. Sou trespassada por um milhão de flechas. Sinto-me atingida pelo ridículo. Eu que seria capaz de expor o peito às tempestades e de me deixar alegremente cobrir pelo granizo, estou imobilizada. Fico exposta. O tigre salta. As línguas golpeiam-me como chicotes. Móveis e incessantes agitam-se contra mim. Preciso de simular, evitar os seus golpes com mentiras. Que amuleto me poderá proteger de semelhante mal? Que rosto poderei invocar que seja uma fonte de frescura neste calor abafado? Penso em nomes que li nas etiquetas das malas, mães de vestidos caindo sobre os joelhos brancos, clareiras por onde descem colinas escarpadas. Protejam-me, grito, escondam-me, porque sou a mais nova e a mais desprotegida de todas. Jinny, tal como uma gaivota cavalgando as ondas, dirige habilmente os seus olhares de um lado para outro, dizendo isto e aquilo sem precisar de mentir. Mas eu minto. Dissimulo.
Quando estou só, embalo as minhas bacias cheias de água. Reino sobre os meus navios. Mas aqui, torcendo distraidamente as borlas das cortinas de brocado, sinto-me dilacerada; não me sinto inteira. Onde vai Jinny buscar a segurança que tem ao dannçar, ou Susan a certeza com que tranquilamente sentada à luz da lâmpada enfia na agulha a linha branca? Dizem «sim», dizem «não»; são capazes de bater com o punho na mesa. Porém, eu duvido, tremo, vejo a sombra do espinheiro selvagem que se agita no deserto.
Agora vou caminhar como se tivesse um objectivo e atravessarei o quarto até à varanda coberta por um toldo. Vejo o céu onde a lua espalha o seu fulgor súbito. Vejo também as grades da praça e duas pessoas sem rosto, imóveis como estátuas contra o céu. Existe, pois, um mundo onde nada se modifica. Basta sair deste salão onde se agitam as línguas que me golpeiam como facas, que me fazem balbuciar e me obrigam a mentir, para encontrar rostos envoltos em beleza onde não há vestígios de traços conhecidos. Os amantes estão abrigados sob o plátano. A uma esquina há um polícia, sentinela imóvel. Um homem passa. Eis um mundo onde nada muda. Mas eu ainda não estou suficientemente serena para poder formar uma frase, continuo parada na ponta dos pés à beira do fogo, queimada pelo seu sopro ardente, com medo de que a porta se abra e o tigre salte. O que digo é sempre contestado. Sou interrompida cada vez que a porta se abre. Ainda não tenho vinte e um anos. Nasci para ser estilhaçada. Nasci para que se riam de mim. Estou destinada a andar à deriva, entre os homens e mulheres de faces contraídas e línguas mentirosas, como um pedaço de cortiça num mar revolto. De cada vez que a porta se abre sou projectada para longe como uma alga. Sou a espuma que deposita a sua brancura nas mais longínquas rochas. Sou também uma rapariga, aqui, de pé nesta sala."
Virginia Woolf, As Ondas

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