domingo, 4 de abril de 2010

"Havia já muitos anos que, de Combray, tudo o que não era cenário e o drama do meu deitar já não existia para mim, quando, num dia de Inverno, ao entrar em casa, a minha mãe, vendo que eu tinha frio, me ofereceu chá, coisa que eu não costumava tomar. A princípio recusei, mas, não sei porquê, acabei por aceitar. Ela mandou buscar um daqueles bolos pequenos e redondos chamados «madalenas», que parecem ter sido moldados na valva estriada de uma vieira. E logo, maquinalmente, acabrunhado com o dia sombrio e com a perspectiva de um triste amanhã, levei à boca a colher de chá onde tinha deixado amolecer um pedaço de madalena. Mas, no mesmo instante em que o gole misturado com as migalhas do bolo tocou no meu palato, eu estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Fora invadido por um prazer delicioso, isolado, sem noção da sua causa. Imediatamente me tomara indiferentes as vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, do mesmo modo que o amor opera, enchendo-me de uma essência preciosa: ou melhor, essa essência não estava em mim, era eu. Eu tinha deixado de sentir-me medíocre, contingente, mortal. Donde poderia ter vindo essa poderosa alegria? Sentia que estava associada ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infinitamente, que não devia ser da mesma natureza. Donde vinha? Que significava? Onde apreendê-la? Bebo um segundo gole, no qual não encontro mais que no primeiro; um terceiro, que me traz um pouco menos que o segundo. É altura de parar, a virtude da bebida parece diminuir. É claro que a verdade que procuro não está nela, mas em mim. Ela despertou-a, mas não a conhece, e só pode repetir indefinidamente, cada vez com menos força, o mesmo testemunho que não sei interpretar e que quero ao menos poder voltar a pedir-lhe, a redescobrir intacto, à minha disposição, daqui a pouco, para um esclarecimento decisivo. Pouso a chávena de chá e volto-me para o meu espírito. É ele que tem de descobrir a verdade. Mas como? Grave incerteza, sempre que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo; quando ele, o explorador, é ao mesmo tempo a região obscura onde deve procurar e onde de nada lhe servirá toda a sua bagagem. Procurar? Não só: criar. Está diante de algo que ainda não é e que só ele pode realizar, e depois fazer entrar na sua luz.
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E, de súbito, surgiu-me a recordação. Este gosto era o gosto do pedacinho de madalena que, nos domingos de manhã, em Combray (porque nesse dia eu não saía antes da hora da missa), quando ia dar-lhe os bons-dias ao quarto, a minha tia Léonie me oferecia depois de o ter mergulhado na sua infusão de chá ou de tília. A visão da pequena madalena não me evocara nada antes de a ter provado: talvez porque, tendo visto muitas, sem as comer, nos balcões das pastelarias, a sua imagem deixara aqueles dias de Combray para se ligar a outros mais recentes; talvez porque, daquelas recordações abandonadas durante tanto tempo fora da memória, nada sobrevivia, tudo se tinha desagregado; as formas - e também a da conchinha de pastelaria, tão generosamente sensual sob o seu pregueado severo e devoto - tinham-se anulado, ou, adormecidas, tinham perdido a força de expansão que lhes teria permitido alcançar a minha consciência. Mas, quando nada subsiste de um passado antigo, depois da morte dos seres, depois da destruição das coisas, sozinhos, mais frágeis mas mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis, o cheiro e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o resto, trazendo sem vergar, na sua gotícula quase impalpável, o edifício imenso da recordação.
E, mal reconheci o gosto do pedaço de madalena molhado no chá de tília que a minha tia me dava (embora ainda não soubesse e tivesse que deixar para muito mais tarde o motivo pelo qual essa recordação me tomava tão feliz), logo a velha casa cinzenta que dava para a rua, onde ficava o seu quarto, veio aplicar-se como um cenário teatral, ao pequeno pavilhão virado para o jardim, que tinham mandado construir para os meus pais nas traseiras (aquele trecho truncado que era a única coisa que eu voltara a ver até então); e, com a casa, a cidade, de manhã até à noite, com qualquer tempo, a praça para onde me mandavam antes do almoço, as ruas onde eu ia fazer compras, os caminhos que seguíamos quando estava bom tempo. E, como naquele jogo em que os japoneses se entretêm a mergulhar numa taça de porcelana cheia de água uns pedacinhos de papel até ali indistintos e que, assim que mergulham, se estendem, ganham cor e contornos, se diferenciam, se transformam em flores, em casas, em personagens consistentes e reconhecíveis, também agora todas as flores do nosso jardim e as do parque do senhor Swann, e os nenúfares brancos do Vivonne, e a boa gente da aldeia, e as suas casinhas, e Combray inteira e os seus arredores, tudo isso ganhou forma e solidez, saiu, cidade e jardins, da minha chávena de chá."
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (I - Do Lado de Swann)

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