domingo, 4 de abril de 2010

"(...) pedindo papel e lápis ao médico, compus, apesar dos solavancos da carruagem, para aliviar a consciência e obedecer ao meu entusiasmo, o pequeno trecho seguinte, que mais tarde encontrei e ao qual poucas modificações tive de fazer:
«Sozinhos, erguendo-se do nível da planície e como que perdidos em campo raso, subiam para o céu os dois campanários de Martinville. Em breve vimos três: vindo pôr-se à frente deles numa volta atrevida, um campanário retardatário, o de Vieuxvicq, juntara-se a ele. Os minutos passavam, íamos depressa e, no entanto, os três campanários estavam sempre ao longe, à nossa frente, como três pássaros pousados na planície, imóveis e que se distinguem ao sol. Depois, o campanário de Vieuxvicq afastou-se, tomou distância, e os campanários de Martinville ficaram sós, iluminados pela luz do poente que, mesmo àquela distância, eu via brincar e sorrir nos seus declives. Tínhamos demorado tanto a aproximar-nos deles que eu pensava no tempo que ainda faltava para alcançá-los quando, de repente, a carruagem, depois de dar uma volta, os depôs aos nossos pés; e eles tinham-se lançado tão rudemente ao seu encontro que mal tivemos tempo de parar para não embater no pórtico. Prosseguimos o nosso caminho; já tínhamos deixado Martinville há um pouco e a aldeia, depois de nos ter acompanhado durante alguns segundos, desaparecera, os seus campanários e o de Vieuxvicq deixados sós no horizonte, a ver-nos fugir, agitavam em sinal de adeus os seus cimos ensolarados. Por vezes, um deles afastava-se para que os outros dois pudessem avistar-nos mais um instante; mas a estrada mudou de direcção, eles viraram na luz como três gonzos de ouro e desapareceram aos meus olhos. Mas, um pouco mais tarde, como já estávamos perto de Combray e o Sol já se tinha posto, avistei-os pela última vez de muito longe, não parecendo mais que três flores pintadas no céu, acima da linha baixa dos campos. Faziam-me pensar também nas três meninas de uma lenda, abandonadas numa solidão em que já desciam as trevas; enquanto nos afastávamos a galope, vi-os procurar timidamente o seu caminho e, após alguns desajeitados tropeções das suas nobres silhuetas, encostarem-se uns aos outros, deslizarem um por trás do outro, formarem no céu ainda rosado uma única forma negra, encantadora e resignada, e apagarem-se na noite.»
Nunca mais pensei nesta página, mas naquele momento, quando, no canto do assento onde o cocheiro do médico costumava meter dentro de um cesto as aves que comprara no mercado de Martinville, acabei de escrevê-la, fiquei tão feliz, sentia que ela me desembaraçara tão perfeitamente daqueles campanários e daquilo que escondiam por detrás deles que, como se eu mesmo fosse uma galinha e acabasse de pôr um ovo, me pus a cantar a plenos pulmões."
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (I - Do Lado de Swann)
(Ler na língua original)

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