domingo, 4 de abril de 2010

"Reconhecia-se o campanário de Saint-Hilaire de muito longe, inscrevendo o seu vulto inesquecível no horizonte onde Combray ainda não aparecia; quando, do comboio que na semana da Páscoa nos trazia de Paris, o meu pai o avistava, deslizando em todos os sulcos do céu, fazendo correr o seu pequeno galo de ferro em todos os sentidos, dizia-nos: «Vá, peguem nas mantas, já chegámos.» E, num dos maiores passeios que dávamos em Combray, havia um lugar onde a estreita estrada desembocava de repente num imenso planalto, delimitado no horizonte por uns bosques esfarrapados que só a uma ponta do campanário de Saint-Hilaire ultrapassusava, mas tão delgada, tão rósea, que parecia apenas riscada no céu por uma unha, no intento de dar àquela paisagem, àquele quadro todo de natureza, esta pequena marca de arte, esta única indicação humana. Quando nos aproximávamos e conseguíamos distinguir o resto da torre quadrada e semidestruída que, menos alta, subsistia ao seu lado, deixávamo-nos impressionar sobretudo com o tom avermelhado e sombrio das pedras; e, numa manhã brumosa de Outono, erguendo-se acima do roxo tempestuoso das vinhas, dir-se-ia uma ruína de púrpura quase da cor da vinha-virgem.
Muitas vezes, na praça, quando voltávamos a casa, a minha avó mandava-me parar para o contemplar. Das janelas da sua torre, colocadas duas a duas umas sobre as outras, com a justa e original proporção nas distâncias que não dá beleza e dignidade apenas aos rostos humanos, largava, deixava cair a intervalos regulares revoadas de corvos que, durante um momento, esvoaçavam aos gritos, como se as velhas pedras que os deixavam à vontade sem dar mostras de os ver, tornando-se subitamente inabitáveis e libertando um princípio de agitação infinita, lhes tivessem batido e os houvessem empurrado. Depois, tendo riscado em todos os sentidos o veludo roxo do ar da noite, bruscamente acalmados, voltavam a ser absorvidos na torre, que de nefasta se tornava propícia, alguns, pousados aqui e ali, como que imóveis mas apanhando talvez algum insecto, na ponta de um coruchéu, como uma gaivota parada com a imobilidade de um pescador na crista de uma vaga.
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E ainda hoje, numa grande cidade da província ou num bairro de Paris que conheço mal, se um transeunte que me «pôs em bom caminho» me mostra ao longe, como um ponto de referência, a torre de um hospital, o campanário de um convento erguendo a ponta do seu barrete eclesiástico na esquina de uma rua que eu devo tomar, por menos que a minha memória possa obscuramente encontrar neles algum traço de semelhança com o vulto caro e desaparecido, o transeunte, se por acaso se voltar para ver se eu não me perco, pode, para seu espanto, avistar-me, esquecido do passeio iniciado ou da obrigação, ali parado diante do campanário, durante horas, imóvel; tentando recordar-me, sentindo no fundo de mim terras reconquistadas ao esquecimento que vão secando e que se vão reconstruindo; e então, sem dúvida, e mais ansiosamente do que há pouco, quando lhe pedia que me informasse, continuo a procurar o meu caminho, dobro urna rua ... mas ... é no meu coração ... "
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (I - Do Lado de Swann)
(Ler na língua original)

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