domingo, 25 de janeiro de 2009

"Durante a projecção da Morte em Veneza, dei por mim a perguntar mentalmente ao realizador quando se disporia ele a mostrar, mesmo de arrepio, ao menos um dos «lugares notórios» da cidade: a Piazza San Marco, os Mori da Torre do Relógio, o Campanile, a Loggetta de Sansovino, o Palácio dos Doges, a fachada ou as cúpulas da Basílica. Mas o filme foi correndo, veio a última bobina, e nem uma só concessão às tentações do pitoresco fácil. Porquê? Deixei a interrogação no ar à espera de que o acaso me desse a resposta um dia. Mas não a esperava tão cedo.
A primeira vez que estive em Veneza, usei o meu tempo na descoberta pessoal da epiderme da cidade, pondo escrupulosamente os pés e os olhos onde milhões de outras pessoas haviam posto já os seus. Por esta inocente falta de originalidade me atire a primeira pedra quem nunca cometeu outras maiores. Desta vez, porém, revisitados todos os lugares conhecidos e novamente certificado das excelentes razões turísticas de Veneza, decidi-me a virar as costas às magnificências ribeirinhas do Canal Grande e penetrei no interior da cidade. Fugi deliberadamente aos espaços abertos e deixei-me perder, sem mapa nem roteiro, pelas ruas mais tortuosas e abandonadas (as calli), até dar por mim no coração obscuro de uma cidade que enfim se revelava. E foi então que supus (e suponho agora) ter compreendido a atitude de Visconti: se um passe de mágica tirasse a Veneza tudo quanto de óbvio a ilustra aos olhos do mundo, a sua fascinação particular permaneceria intacta. O filme Morte em Veneza decorre na única Veneza real: a do silêncio e da sombra, da negra franja que a água dos canais desenha no rente das fachadas, do cheiro insidiosamente pútrido de uma humidade que nenhum sol levanta. De quantas cidades conheço, Veneza é a única que manifestamente morre, que o sabe, e, fatalista, não se importa muito.
Choveu no último dia. O Canal Grande era um rio grande e pulsante, e a curta maré, forçada pelo vento, gorgolejava no chão da Praça de S. Marcos e junto às portas da Basílica. Veneza flutuava como uma jangada imensa, afunda, não afunda, sustida, milagrosamente, no último instante, por uma qualquer ponte minúscula lá nos confins da cidade. Mas, como uma desforra contra o inevitável, veio-me à lembrança aquela pintura de Fabrizio Clerici que mostra Veneza sem água, com os seus prédios erguidos sobre altíssimas estacas, enquanto o fundo do Adriático se cobre da mesma névoa que antes diluía a cidade, agora aberta, nas alturas, ao sol."
José Saramago, Manual de Pintura e Caligrafia

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