quinta-feira, 6 de maio de 2010

"Quando se me revelou o mais oculto da sonata de Vinteuil, arrastado pelo hábito fora do alcance da minha sensibilidade, já o que eu distinguira e preferira a princípio começava a escapar-me, a fugir-me. Por só ter podido amar em tempos sucessivos tudo o que esta sonata me trazia, eu nunca a possuía inteiramente: ela era semelhante à vida. Mas, menos decepcionantes que a vida, estas grandes obras-primas não começam por dar-nos o que têm de melhor. Na sonata de Vinteuil, as belezas que descobrimos mais cedo são também aquelas de que mais depressa nos cansamos, e certamente pela mesma razão: diferem menos daquilo que já conhecíamos. Mas quando essas se afastaram, resta-nos amar uma frase que, pela sua ordem, demasiado nova para oferecer ao nosso espírito mais que confusão, se nos tornara indiscernível e se conservara intacta; então, ei-la que vem até nós em último lugar, essa frase diante da qual passávamos todos os dias sem saber e que se tinha reservado, que, pelo poder da sua beleza, se tinha tornado invisível e permanecido desconhecida. Mas também a deixaremos por último. E havemos de amá-la por mais tempo que as outras, porque levámos mais tempo a amá-la. De resto, esse tempo que é necessário a um indivíduo - como a mim me foi necessário para esta sonata - para penetrar uma obra um pouco profunda, não é mais do que o resumo e como que o símbolo dos anos, dos séculos por vezes, que decorrem antes que o público possa amar uma obra-prima verdadeiramente nova. Assim, talvez o homem de génio, para se poupar às incompreensões da multidão, pense que, como os contemporâneos carecem do necessário recuo, as obras escritas para a posteridade só por ela deveriam ser lidas, como certos quadros que, de muito perto, se julgam mal. Mas, na realidade, toda a cobarde precaução para evitar os juízos erróneos é inútil, estes não podem ser evitados. O motivo pelo qual uma obra de génio dificilmente conquista a admiração imediata é que aquele que a escreveu é extraordinário, é que pouca gente se parece com ele. É a sua própria obra que, fecundando os raros espíritos capazes de a compreender, os fará crescer e multiplicar-se. Foram os quartetos de Beethoven (os quartetos XII, XIII, XIV e XV) que levaram cinquenta anos a fazer nascer e crescer o público dos quartetos de Beethoven, realizando assim, como todas as obras-primas, um progresso, se não no valor dos artistas, ao menos na sociedade dos espíritos, hoje largamente composta por aquilo que era impossível encontrar quando a obra-prima apareceu, isto é, seres capazes de amá-la. Aquilo a que se chama a posteridade é a posteridade da obra. É preciso que a própria obra (não tendo em conta, para simplificar, os génios que na época podem preparar paralelamente para o futuro um público melhor de que outros génios beneficiarão) crie a sua posteridade. Se, por conseguinte, a obra se mantivesse em reserva e só fosse conhecida pela posteridade, esta não seria, para essa obra, a posteridade, mas uma assembleia de contemporâneos que teria simplesmente vivido cinquenta anos mais tarde. Assim, se quiser que a obra possa seguir o seu caminho, é necessário que o artista - e fora o que Vinteuil fizera - a lance onde haja suficiente profundidade, em pleno e longínquo futuro."
Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido (II - à Sombra das Jovens em Flor)
(Ler na língua original)

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